Jesus e a Língua Hebraica – Parte 2

Jesus e a Língua Hebraica – Parte 2

21 de Junho, 2021 8 Por Getúlio Cidade

No presente artigo, vou expandir um pouco mais o tema da língua hebraica no ministério de Jesus devido ao interesse despertado pelos que têm lido sobre o tema no livro A Oliveira Natural: As Raízes Judaicas do Cristianismo, bem como pelo bom retorno do último artigo postado aqui na página. Vamos analisar brevemente mais algumas expressões de Jesus e a língua hebraica (parte 2) contextualizada nos Evangelhos.

Quando se lê a Bíblia, deve-se ter em mente que os fatos relatados ocorrem em um contexto hebraico. A despeito do original dos Evangelhos ter sido escrito em grego, suas histórias ocorreram tendo não somente a língua hebraica como pano de fundo, mas os escritores são de origem hebraica, a cultura é hebraica, as tradições e os conceitos são hebraicos. Embora houvesse também o aramaico falado no tempo de Jesus, o consenso hoje entre os eruditos é de que os relatos dos Evangelhos tenham sido escritos inicialmente em hebraico, somente traduzidos mais tarde para o grego.

Dentro do hebraico, há os hebraísmos que são locuções peculiares da língua hebraica. Trata-se de expressões únicas ocorridas apenas dentro dessa língua. Em uma instância mais ampla, referem-se também à cultura, tradições e fé do povo judeu. Os Evangelhos estão repletos de hebraísmos, expressões idiomáticas empregadas no século I que foram traduzidas literalmente para o grego. Isso explica o porquê de tantas palavras e expressões usadas por Jesus serem de difícil compreensão.

Muitos eruditos acreditam que demasiada ênfase foi dada ao estudo do grego por causa dos Evangelhos em detrimento do hebraico. Hoje sabe-se que a chave para compreender melhor seus escritos reside na língua hebraica, além de se buscar conhecer e compreender a história e cultura hebraicas. Em suma, a resposta está em Israel, a Oliveira Natural, e nas raízes judaicas do cristianismo.

“Salgado com fogo”

Uma das expressões usadas por Yeshua mais difíceis de compreender está no Evangelho de Marcos: “Porque cada um será salgado com fogo” Marcos 9:49. Essa passagem fica ainda mais confusa no verso seguinte, quando Ele diz que os discípulos devem ter sal em si mesmos. Aqui a interpretação é clara e direta. Os discípulos devem fazer a diferença com seu modo de vida, assim como o sal faz a diferença no sabor da comida. Nos dois versos, Yeshua faz um duplo emprego com a palavra sal, o que mostra um bom domínio do hebraico, como era de se esperar de um rabino. No entanto, o que Ele quis dizer no verso 49 com “salgado com fogo”?   

Muitas explicações teológicas têm sido dadas, ao longo dos séculos, sobre essa expressão e a maioria delas afirma que Jesus estava se referindo à purificação pelo fogo, uma vez que o sal era usado nas ofertas sacrificiais do templo. Porém, estudos mais recentes, a partir do século XX, feitos por intermédio de tradução reversa do grego para o hebraico, mostraram que se trata de um hebraísmo. Um dos pioneiros nesses estudos foi Robert Lindsey, judeu messiânico que viveu em Israel no século passado e um dos grandes estudiosos do Novo Testamento sob o contexto judaico. Ele chegou a escrever Uma Tradução Hebraica para o Evangelho de Marcos, o que trouxe muita luz sobre o assunto.

Ao analisar o emprego do sal nas Escrituras, vê-se que, além de seu uso nos sacrifícios no templo, ele era também um símbolo de esterilidade, como descrito em Ezequiel 47:11; e de destruição, como em Juízes 9:45. Talvez o caso mais conhecido seja o da mulher de Ló que foi transformada em estátua de sal por sua desobediência.

Se analisarmos o contexto em que Yeshua usa essa expressão, Ele está falando sobre o inferno e seu sofrimento para os que para lá forem lançados (Marcos 9:42-48). Ao compreendermos esse significado do sal na cultura hebraica, faz todo sentido dizer que o Messias está se referindo à destruição completa pelo fogo do inferno. Isso nada tem a ver com purificação da alma ou o que quer que seja.

A tradução de Robert Lindsey sugere que essa expressão idiomática “salgado com fogo” foi traduzida literalmente para o grego, em vez de ser adaptada. Uma tradução menos literal e mais precisa seria: “Cada um (que for lançado no inferno) será completamente destruído”. A expressão “salgado com fogo” foi perfeitamente compreendida pela audiência de Yeshua, porém, ao ser traduzida literalmente para outras línguas e culturas que desconheciam a cultura hebraica, perdeu seu sentido, causando confusão ainda hoje.

Olho bom e olho mau

Outra passagem incompreendida de Jesus encontra-se no Evangelho de Mateus: “São os olhos a lâmpada do corpo. Se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo será luminoso;
se, porém, os teus olhos forem maus, todo o teu corpo estará em trevas (…)” Mateus 6:22,23.  Mais uma vez, os tradutores incumbidos de passar o original escrito por Mateus para o grego falharam em identificar uma antiga expressão idiomática do hebraico, dando-nos uma tradução de sentido obscuro.

O original, na verdade, para a palavra traduzida como olhos é olho. “Olho bom” (ayin tovah) era uma expressão hebraica para uma pessoa generosa e “olho mau” (ayin rah) para alguém avarento. Em português, temos uma expressão coloquial equivalente que é: “mão aberta” (pessoa generosa) e “mão fechada” (pessoa avarenta). Logo, no século I em Israel, dizer que uma pessoa tinha “olho bom” significava dizer que era generosa para com os pobres e necessitados, dando esmolas e bens materiais. Por outro lado, o “olho mau” era o indivíduo mesquinho, sovina, incapaz de dividir o que tem ou de abrir a mão a alguém com necessidades materiais.

Essas expressões idiomáticas eram antigas já no tempo de Jesus e podem ser encontradas no livro de Provérbios. Em algumas versões em português, elas são identificadas e aparecem traduzidas corretamente. Provérbios 22:9 diz: “O generoso será abençoado, pois dá do seu pão ao pobre”. A palavra para generoso no original é ayin tovah (olho bom). Por outro lado, Provérbios 23:6 aconselha: “Não comas o pão do avarento, nem cobices os seus manjares gostosos”.[1] Aqui a palavra para avarento no original é ayin rah (olho mau).

Portanto, Jesus está ensinando como reconhecer o caráter de uma pessoa pela forma com que lida com suas finanças e recursos materiais. Se ela dá aos pobres e necessitados com generosidade, é uma pessoa boa (todo o seu corpo tem luz). Se ao contrário, é uma pessoa apegada aos bens materiais, egoísta, a ponto de não dividir nada do que tem nem se sensibiliza com os pobres e necessitados, é uma má pessoa por inteiro (todo o seu corpo estará em trevas). Uma vez interpretada corretamente a passagem, a lição que podemos extrair é que, sob o ponto de vista de Deus, a maneira com que uma pessoa lida com suas finanças e recursos materiais é um imenso indicador de sua vida espiritual.   

Ao usar o grego como língua principal para interpretar verdades que foram ensinadas originalmente no hebraico e, em menor grau, em aramaico, fez com que a Igreja fosse dividida em várias doutrinas. Some-se a isso o pensamento helenista que se impôs sobre a Igreja, bem como o paganismo nele entranhado, e temos a explicação para tantos desvios doutrinários bem como inúmeras divergências que assolam o cristianismo.

Se tão somente a Igreja não tivesse se apartado de suas raízes, o cristianismo não seria tão dividido como é hoje. Não se pode compreender a essência das palavras e ensinamentos de Jesus se não nos voltarmos para o contexto cultural de sua época, em especial, para a língua hebraica falada em seus dias, para a cultura rabínica da qual Ele fez parte e, principalmente, para a Torá, os Profetas e demais livros do Velho Testamento, tão desconhecidos e ignorados por muitos cristãos de hoje.  


[1] Edição JFA Revisada. Ainda é possível encontrar traduções literais nessas passagens em outras versões.

Extraído e adaptado do livro A Oliveira Natural: As Raízes Judaicas do Cristianismo (Vol. 1).

Referências

David Bivin e Roy Blizzard, Jr. Understanding the Difficult Words of Jesus, (Shippensburg, PA: Destiny Image Publishers, 2002).

Weston W. Fields. Salted with Fire, Jerusalem Perspective, 1maio1988. https://www.jerusalemperspective.com/2192/#return-note-2192-1  

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A Reconciliação Profética de Esaú e Jacó