Jesus e a Língua Hebraica

Jesus e a Língua Hebraica

14 de Junho, 2021 16 Por Getúlio Cidade

Ao estudar as raízes judaicas do cristianismo, é necessário compreender o lado judeu de Jesus (Yeshua), algo que nem sempre é levado em consideração e que, porém, faz uma enorme diferença no assunto. Se enxergarmos seu ministério como inerente às raízes judaicas, tudo fica mais fácil de compreender. Por falta de espaço, irei abordar nesse artigo apenas um aspecto de seu ministério: a língua hebraica. E espero que apenas isso lance luz sobre o quão importante é conhecer nossas raízes judaicas para se conhecer também melhor sobre nosso Messias.

A seita dos nazarenos

Antes de mais nada, Jesus não veio abolir o judaísmo e fundar o cristianismo. A criação do cristianismo foi uma invenção humana. A intenção de Deus nunca foi desvincular a Igreja de Israel, a Oliveira Natural, a raiz autêntica a quem pertence a adoção de filhos, a glória, as alianças, a Torá, o culto e as promessas. De Israel são os patriarcas e deles descende Yeshua, segundo a carne (Romanos 9:4-5). A Igreja primitiva, estabelecida sobre o firme fundamento do Messias Yeshua, era composta de judeus em quase sua totalidade e foi admitindo gentios à medida que o Evangelho era disseminado ao redor do mundo conhecido da época.

Essa Igreja, contendo um número cada vez maior de gentios, não foi uma árvore estabelecida à parte, mas foi enxertada por Deus na Oliveira Natural, fazendo parte dela e sendo sustentada por ela (Romanos 11:17-18). Os ensinos de Jesus permaneceram dentro de seu contexto judaico dos mandamentos e ordenanças da Torá, bem como da lei oral. Os primeiros seguidores de Jesus mantiveram suas raízes judaicas intactas, mesmo os gentios que foram sendo acrescentados, guardando as Festas do Senhor e o Shabbat, por exemplo.

Até os demais judeus consideravam a Igreja primitiva integrante do judaísmo, sendo conhecida como a “seita dos nazarenos” como se pode verificar em Atos 24:5. A palavra para seita aqui não possui a conotação negativa de hoje, mas significava uma corrente filosófica e doutrinária própria dentro do judaísmo. Vemos esse mesmo termo empregado por Paulo quando diz que foi educado segundo a “seita dos fariseus” (Atos 26:5) e em Atos 5:17, quando é mencionada a “seita dos saduceus”.

O que havia de comum dentro dessas seitas ou correntes doutrinárias? Eram todas partes do judaísmo, incluindo a “seita dos nazarenos”, hoje conhecida por cristianismo. A desvinculação da Oliveira Natural foi um ato humano[1] que trouxe até hoje enorme prejuízo à Igreja como a perda de consistência doutrinária dos Evangelhos e a falta de profundidade em revelação sobre o eterno plano redentor de Deus para Israel e o mundo.

Expressões idiomáticas

Entre os fatores que redundaram nessa perda doutrinária do conteúdo dos Evangelhos, estão o emprego da língua grega como sendo a original do Novo Testamento e a consequente cultura helenizada e pagã que se impregnou na Igreja em seus primeiros séculos. Embora o grego fosse uma língua universal no tempo de Jesus, Ele não falava em grego com seus discípulos, pois todos eram judeus. Muitos eruditos concordam que os Evangelhos foram escritos originalmente em hebraico, sendo traduzidos mais tarde para o grego. Isso tinha o propósito óbvio de difundir os ensinos de Jesus a outros povos e culturas em cumprimento ao “Ide”.

Entretanto, muito se perdeu na tradução, pois não se considerou à época um fator fundamental que eram as expressões idiomáticas empregadas por Yeshua. E como qualquer tradutor sabe, uma expressão idiomática traduzida literalmente de um idioma para outro, na maioria das vezes, fica completamente sem sentido e gera confusão.

Um exemplo bem ilustrativo seria usar uma expressão idiomática que temos no português para chuva: “Está chovendo canivete”. Se alguém ouve essa expressão a respeito de um lugar para a qual está se dirigindo, irá provavelmente pegar seu guarda-chuva antes de sair de casa, pois sabe que se trata de uma chuva torrencial naquele local. A expressão idiomática equivalente a essa em inglês traduzida literalmente para o português é: Está chovendo gatos e cachorros![2] No entanto, se alguém ouvi-la em português exatamente como é no original, pensará em algo como uma pessoa em cima de algum prédio arremessando gatos e cachorros na rua; não saberá que se trata de uma chuva torrencial.

Infelizmente, é exatamente isso que ocorre com certas palavras e expressões usadas por Jesus nos Evangelhos. Para compreendê-las, é necessário voltar à raiz da Oliveira, ir à origem, traduzindo o grego de volta para o hebraico e aramaico, ambas as línguas usadas no tempo de Jesus, onde as palavras ganham sentido. Tais descobertas chegaram a nós graças a vários eruditos do hebraico bíblico, em especial no século XX, a maior parte deles judeus messiânicos, a quem devemos ser imensamente gratos, que fizeram e continuam a fazer esse trabalho fantástico que nos mostra o quanto perdemos em alguns ensinamentos de Jesus nos Evangelhos, acarretando incompreensões teológicas e inconsistências doutrinárias ao longo da história da Igreja.

Cumprindo a Torá

Nesse aspecto, uma das passagens mais incompreendidas está em Mateus 5:17-18, pertencente ao Sermão da Montanha, onde Jesus emprega uma expressão idiomática bem conhecida em Israel no século I. Os tradutores que converteram este Evangelho para o grego, no entanto, falharam em compreender seu sentido no original, traduzindo-a literalmente. “Não pensais que vim destruir a lei ou os profetas; não vim para destruí-los, mas para cumpri-los. Em verdade vos digo que até que o céu e a terra passem, nem um jota ou um til se omitirá da lei, sem que tudo seja cumprido”.

Ao se deparar com essa passagem, muitos cristãos acreditam que Cristo cumpriu toda a lei para que nós não precisemos cumpri-la. Entretanto, nada poderia estar mais longe da verdade. Jesus está usando duas expressões muito comuns entre os rabinos de seu tempo, que eram “destruir” e “cumprir” a Torá. “Destruir a Torá” significa interpretar de maneira incorreta seus mandamentos. O contrário disso era “cumprir a Torá”, ou seja, dar a correta interpretação a ela.[3]

Havia diversas correntes e escolas rabínicas no tempo de Jesus e cada uma delas atribuía sua própria interpretação aos mandamentos da Torá. Embora Jesus tenha cumprido toda a Torá e os Profetas, nessa passagem, Ele não está se referindo a cumprir ou não cumprir os mandamentos, mas à sua maneira de interpretá-los. Não cumprir os mandamentos ou aboli-los estava fora de cogitação para qualquer rabino, dos quais Jesus era um.

O texto de Mateus 5:17 era uma resposta à acusação que recebia de alguns mestres de que Ele estava dando interpretações erradas aos mandamentos como, por exemplo, quando afirmou a alguns fariseus que “o sábado foi feito por causa do homem, e não o homem por causa do sábado” Marcos 2:27. Ele escrevera a Torá com seu dedo em tábuas de pedra e a entregara a Moisés. Logo, Sua forma de “cumprir” (interpretar) a Torá era a correta e devia ser observada por seus seguidores.

Jesus acrescenta que nem mesmo um yod (a menor letra do alfabeto hebraico) nem o menor acento (minúsculo sinal ortográfico decorativo que os escribas usavam no topo de algumas letras) iriam passar da Torá sem que fossem cumpridos. Ele era o Verbo de Deus, a Palavra viva, sendo a personificação em carne e osso da Torá, dos Profetas e demais livros que compõem a Bíblia judaica e equivalem ao Velho Testamento da Bíblia cristã.

Jesus de maneira alguma aboliu essas Escrituras ou estimulou seu não cumprimento. Pelo contrário, esses céus e Terra conforme conhecemos irão passar, mas cada letra, por menor que seja, e cada sinal ortográfico dessas Escrituras se cumprirão. Infelizmente, muitos cristãos ignoram essas palavras e sabem tão pouco ou quase nada sobre o Velho Testamento.

Embora Israel, no século I, convivesse com várias línguas como o grego e o latim, além do aramaico falado nessa época, era no hebraico que constavam os ensinamentos judaicos, incluindo a lei oral, passada de geração a geração. A Torá fora escrita em hebraico e os ensinos de Jesus foram transmitidos nessa língua original, embora os Evangelhos tenham sido disseminados já na tradução do grego.

Exemplos como esse de Mateus estão em vários trechos do Evangelho. E se não nos voltamos para seu significado original, encontrado apenas no hebraico, muito se perde e muito se confunde. Devemos compreender que Jesus fez uso da língua hebraica durante toda a vida e ministério, pois o alvo de sua pregação era o povo de Israel. Portanto, seus ensinos devem ser analisados e somente serão plenamente compreendidos a partir de sua própria língua.


[1] O capítulo 2 do livro A Oliveira Natural: As Raízes Judaicas do Cristianismo (Vol.1) aborda detalhadamente os aspectos históricos que levaram à desvinculação da Igreja de Israel.

[2] Em inglês: It is raining cats and dogs.

[3] David Bivin e Roy Blizzard, Jr. Understanding the Difficult Words of Jesus, (Shippensburg, PA: Destiny Image Publishers, 2002), p. 114.

(Texto extraído e adaptado do livro A Oliveira Natural: As Raízes Judaicas do Cristianismo – Vol. 1)

Leia também:

Jesus e a Língua Hebraica – Parte 2

A Guerra Permanente entre Esaú e Jacó