A Poesia de Deus

A Poesia de Deus

29 de Abril, 2022 2 Por Getúlio Cidade

Segundo a definição convencional, poesia é um gênero literário que usa palavras para compor versos, gerando uma associação harmônica entre eles, seus fonemas e ritmos. Pode ser simplesmente um texto livre, prosaico que utiliza a força das palavras que se dispõem esteticamente nas sentenças, a fim de descrever uma pessoa, a beleza de uma paisagem, um fenômeno da natureza, narrar um acontecimento marcante ou cotidiano, e assim por diante, sempre contemplando a essência poética. É essa essência que gostaria de abordar, mas indo além do simples gênero literário. Estou me referindo à poesia de Deus, disposta fartamente por toda a Bíblia Sagrada, não apenas como literatura, mas expressa cuidadosamente por toda a obra da criação.

A palavra poesia é de raiz latina, mas tem sua origem no grego e transmite a ideia de criar, de fazer ou construir algo. Acho pertinente ressaltar esse sentido etimológico porque mostra seu alcance mais amplo, além de um simples gênero da literatura, e se encaixa perfeitamente na poesia de Deus. Logicamente, o poeta comum nada mais é que um escritor que cria beleza com as palavras. No caso de Deus, Ele não somente trabalha com as palavras para formar poesia, especialmente por meio de seus escribas e profetas, mas sendo Ele mesmo a Palavra, em última instância, usa-a para criar todas as coisas.

“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.
Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez.” João 1:1-3 O Verbo é o Filho, a própria Palavra de Deus em ação, expressão maior de sua poesia por toda a obra da criação.

A POESIA DE DEUS NA PALAVRA ESCRITA

A poesia como gênero literário se encontra do início ao fim da Bíblia, sendo mais frequente nos livros poéticos como Salmos e Provérbios. Logicamente, muito se perdeu da beleza literária nas seguidas traduções. O livro de Cântico dos Cânticos (Shir HaShirim), por exemplo, é uma longa poesia do início ao fim com versos bem cadenciados e, em vários pontos, rimados. Por melhor que seja a tradução, é impossível conservar a mesma beleza do original. Veja o verso 3 do capítulo 6: “Eu sou do meu amado e ele é meu” que em hebraico é Ani le’dodi ve’dodi li. A rima sonora e cadenciada é claramente perceptível.

O mesmo ocorre com os salmos, todos repletos de poesia com o uso de inúmeras figuras de linguagem, cada uma mais bela que a outra. Veja, por exemplo, este verso: “Seu é o mar, e ele o fez, e as suas mãos formaram a terra seca” Salmos 95:5. Em hebraico, temos: Asher lo hayam ve’hu asahu ve’yabeshet yadav yatazru. Outro exemplo: “Louvai a Deus no seu santuário; louvai-o no firmamento do seu poder.” Salmos 150:1. Novamente, percebe-se a nítida combinação entre fonemas e ritmo no original: Halelu El be’kadshô, Halelu Hu birkia uzô. O fato de que os salmos eram poemas cantados adiciona ainda mais beleza a essas composições milenares.

Entretanto, a forma mais comum na poesia hebraica antiga não é a rima, mas a repetição de um pensamento. Em vez de se combinar palavras de mesmo som, combinam-se palavras ou frases que transmitam a mesma ideia. Essa poesia é uma forma de paralelismo conhecida como quiasmo. Ele ocorre quando a segunda parte do verso repete a primeira de modo diferente. A estrutura dos versos é variável, mas sempre segue um padrão do tipo AABB ou ABCBA, entre outros. O paralelismo também é uma forma de consolidar uma ideia, de firmar algum ensinamento na mente do leitor. Esse estilo poético está espalhado por todas as Escrituras.

Vejamos um pequeno exemplo nos Profetas. “Eu os remirei do poder do inferno e os resgatarei da morte; onde estão, ó morte, as tuas pragas? Onde está, ó inferno, a tua destruição?” Oséias 13:14. “Eu os remirei” equivale a “eu os resgatarei”; e “poder do inferno (sheol)” é um paralelo para “morte”. Na segunda parte, a palavra “morte” aparece novamente e tem seu paralelo mais uma vez em “inferno (sheol)”, assim como “pragas” tem seu paralelo em “destruição”. A estrutura do quiasmo aqui é disposta no formato AABB em seus versos, com ênfase nas duas palavras que se quer destacar e que se revezam no texto: inferno-morte-morte-inferno. 

O exemplo dessa bela poesia hebraica é abundante na Bíblia. Sua aparição, às vezes, é fácil de se encontrar e, outras vezes, requer uma pesquisa mais minuciosa. O próprio Jesus usou o paralelismo em seus ensinos como neste exemplo simples: “Assim, os últimos serão primeiros, e os primeiros serão últimos” Mateus 20:16. Suas palavras em João 5:19-30, por outro lado, formam um belo paralelismo no formato ABCDDCBA que é mais complexo de se detectar e o espaço aqui não me permite esboçá-lo. Porém, dada a dica do formato, fica mais fácil encontrá-lo para os que assim o desejarem.

O paralelismo poético também está bem presente em Apocalipse, um dos livros mais proféticos, em especial, nas palavras de Jesus às sete igrejas da Ásia Menor, com uma estrutura de quiasmo bem clara. O fato de João ver o Senhor ressurreto e glorificado usando a poesia hebraica para se comunicar com as igrejas fora de Israel, preservando suas raízes judaicas, é simplesmente magnífico.

A POESIA DE DEUS NA CRIAÇÃO

A outra maneira de encontrarmos a poesia de Deus é observando sua Criação. Como um poeta usa as palavras para criar, o Pai criou o universo com a Palavra da Verdade, a saber, o próprio Filho, o Verbo vivo. Logo no início da história da criação em Gênesis (B’reshit), antes de Deus abrir a cortina do tempo e colocar sua Palavra criadora em ação, seu Espírito “pairava sobre a face das águas” (Gn. 1:2). Há algo impressionante sobre o verbo traduzido por “pairava” que se perde na tradução.

O verbo מרחפת (merachefet) ocorre apenas duas vezes em toda a Torá. Surge aqui, no início de Gênesis, para reaparecer somente no fim da Torá, em Deuteronômio 32:11, numa outra variante, no cântico de Moisés, composto imediatamente antes de sua morte. Ao falar do cuidado de Deus para com Israel ao tirá-lo do Egito e conduzi-lo pelo deserto por quarenta anos, diz: “Ele o protegeu e dele cuidou; guardou-o como a menina dos seus olhos, como a águia que desperta a sua ninhada, paira sobre os seus filhotes, e depois estende as asas para apanhá-los, levando-os sobre elas” Deuteronômio 32:10,11. A ideia é comparar o cuidado de Deus para com seu povo com o mesmo zelo e amor de uma águia para com seus filhotes, estendendo as asas delicadamente para lhes trazer proteção, ou carregando-os sobre suas asas quando necessário.

Uma águia guarda seus filhotes no ninho – uma imagem de Deus zelando por sua Criação

Não é por acaso que, em Gênesis, o verbo pairar está no gênero feminino (como no hebraico moderno), pois a ideia transmitida é a mesma. No início, o Espírito de Deus pairava com suas asas sobre as águas, representando toda sua Criação ainda sem forma, do mesmo modo que a águia fêmea faz com seus filhotinhos, abraçando-os, demonstrando carinho e afeição. Isso demonstra o amor que, desde o princípio, Ele devota à sua Criação. O fato desse verbo aparecer apenas no início e no fim da Torá se reveste de um profundo significado: o Pai estende suas asas protetoras sobre suas criaturas que nele confiam desde o início até o fim de suas vidas.

Os homens que escreveram a história da Bíblia tinham essa poesia de Deus à flor da pele e a mesclavam com seus talentos e ministérios. Davi, o maior rei da história de Israel, forjado na arte de guerrear para aniquilar seus adversários, era também poeta dessa estirpe. O homem que abateu o temível gigante Golias era capaz de passar horas cantando e louvando a Deus com sua harpa, compondo salmos esplêndidos que são lidos e cantados até hoje em Israel e no mundo inteiro. Como poeta de Deus, tinha sensibilidade para apreciar sua criação, empregando metáforas maravilhosas para descrever a glória divina em árvores, rios, montanhas e animais, como fez no salmo 84, ao observar que uma andorinha fizera ninho dentro do Tabernáculo que mandara erguer em Jerusalém para abrigar a arca.

Tal sensibilidade abundava também em Jesus, o Filho de Davi, que usava elementos tão conhecidos na natureza para ensinar verdades sobre o Reino de Deus. Em seus sermões, chamou a atenção para um mísero grão de mostarda a fim de mostrar a importância das pequenas coisas para se chegar às enormes conquistas. Encorajou-nos a apreciar os lírios dos campos e sua formosura inigualável. E nos mandou aprender com a simplicidade de como vivem os pardais em sua completa dependência de Deus para seu sustento diário.

Por falar em pássaros, como não se deslumbrar com a engenhosidade de um joão-de-barro ao vê-lo construindo sua casa em uma árvore? Como não ser tocado pelo canto alegre dos pássaros ao amanhecer, saudando a alvorada em uma sinfonia de louvor ao Criador? Ou como não contemplar a beleza no mosaico das asas de uma borboleta, ou ainda no voo librado de um beija-flor que bate as asas em uma frequência de até oitenta vezes por segundo, imóvel no ar, para extrair o néctar das flores? Sempre me perguntei por que um beija-flor gasta tanta energia para isso, em vez de pousar sobre a flor e sugá-la tranquilamente. Mas, se assim o fizesse, não seria um beija-flor. Deus o projetou exatamente dessa forma única como fez com cada espécie na natureza.

Embora sejam milhões dessas espécies no mundo animal, vegetal e mineral, espalhadas por terra, mar e ar, cada uma foi criada com um propósito específico por Ele e para glorificá-lo. Certa vez, li um autor perguntar em tom de brincadeira se Deus assistia à televisão. Não sei a resposta exata, mas asseguro que, se assistisse, seu programa preferido não seria o de notícias ou de filmes, mas os documentários da natureza como os do Animal Planet que provavelmente seria seu canal predileto. E a razão para isso é porque Ele é deslumbradamente apaixonado por sua Criação. Não foi à toa que, ao finalizá-la, viu tudo o que tinha feito, e exclamou que era muito bom (Gn. 1:31).

E o que dizer sobre o maravilhoso milagre da gestação de um bebê? Da sensação de insignificância que nos toma perante o céu estrelado e seu infinito número de galáxias? Do esplendor da lua cheia com sua luz prateada rasgando a superfície do mar? Dos matizes mais variados de um pôr-do-sol, um espetáculo gratuito que se repete todos os dias em todas as partes do mundo, como uma pintura a óleo de Van Gogh ao vivo e em cores?

Imagine por um instante o sentimento de realização que Deus teve ao olhar para toda a obra de suas mãos após completa. Imagine o prazer e o deleite ao olhar do alto de seu trono e contemplar esse planeta azul com seus oceanos, continentes e ilhas povoados de seres viventes; as nuvens como flocos de algodão flutuando na atmosfera; e a força da gravidade segurando todas as coisas em seu devido lugar, enquanto a esfera terrestre permanecia suspensa no vácuo em sua beleza ímpar, girando imponente em torno de si. Acredito que, ao contemplar tudo isso, Ele tenha suspirado, emocionando-se profundamente, e dado o sorriso mais iluminado do universo. Estava encerrada sua obra-prima. Os céus e a Terra estavam repletos da poesia de Deus, escrita com a pena de um amor voraz por sua Criação.

A POESIA DE DEUS NA SALVAÇÃO

De toda a Criação, certamente o que mais agradou a Deus foi o homem, pois Ele o fez à sua semelhança. E, por mais que o homem o tenha decepcionado, Ele o amou desde o princípio. E, desde o princípio, sabia que a única maneira de o resgatar seria por meio do Verbo Vivo, aquele que era a Palavra com a qual criou o universo e todas as coisas. Mesmo assim, não poupou esforço em sua criatividade, sabedoria e poder para formar o homem do pó da terra e soprar sobre ele seu Espírito, tornando-o alma vivente (nefesh haiah).

No momento certo, então, enviou o Filho, seu único Filho, que, tomando sobre si nossos pecados, derramou sua vida na dolorosa cruz por expiação. Ali mesmo, escrito com dor, suor, lágrimas e sangue, o Verbo de Deus foi conjugado no passado, presente e futuro simultaneamente para compor a mais bela de todas as poesias, uma poesia extraordinária de amor. Esta é a poesia de Deus para a salvação da humanidade, uma poesia que sempre me emociona quando a leio, até o mais íntimo de meu ser. Definitivamente, Deus é o maior de todos os poetas.


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