O Segredo de Deus

O Segredo de Deus

28 de Junho, 2021 8 Por Getúlio Cidade

Neste artigo, gostaria de prosseguir explorando um pouco mais dessa língua fantástica que é o hebraico. Para isso, escolhi uma de minhas palavras prediletas em toda a Bíblia. Uma simples palavra de três letras, porém, de amplo emprego nas Escrituras e de um profundo significado. Ao examinar sua ocorrência e definição, saberemos também como conhecer o segredo de Deus.

O verso de partida é: “Certamente o Senhor Deus não fará coisa alguma sem ter revelado o seu segredo aos seus servos, os profetas” Amós 3:7. A palavra para segredo é סוד (sôd) e se encontra em diversos trechos da Bíblia com variadas traduções. Pode também significar companhia, conselho (tomado em uma conversa familiar), comunhão ou amizade, e intimidade.[1] Pode ainda significar, em um contexto menos explícito, divã ou assentos confortáveis como um colchão ou uma almofada. No hebraico moderno, a palavra continua com o significado de segredo e possui a mesma raiz do verbo להסתודד (lehistoded) que é contar um segredo.

É uma palavra que deriva do verbo יסד (yaçad) que significa estabelecer, instruir, fundamentar, aconselhar.[2] Este verbo também traz em sua raiz primitiva o significado de reclinar ou sentar junto. A ideia é de se sentar em um círculo de amigos íntimos para tomar conselho, tratar de assuntos importantes ou simplesmente conversar. E nessas conversas, enigmas são externados e decisões são tomadas. Portanto, a ideia transmitida por Amós é de intimidade entre Deus e os profetas, onde Ele desvenda seus mistérios e revela seus segredos a esses que compõem seu círculo de amizade.

Parece estranho que Deus queira compartilhar de seus segredos com alguém, mas é precisamente isso que se transmite no texto. Dada a profundidade do significado da palavra sôd, o texto pode muito bem ser entendido como que o Senhor não fará nada sem antes revelar seu segredo a seus amigos, os profetas. Aqui não se trata de uma simples e breve oração para se pedir algo, mas de uma conversa longa e sincera que somente os que buscam a face do Senhor com interesse apenas em sua presença, sem pressa alguma de “ir embora”, conseguem ter. Esses fazem parte do seu círculo de amizades e Ele não fará nada sem antes dar ciência a seus leais amigos.

Foi exatamente isso a que se referiu Yeshua quando disse: “Já não os chamo servos, porque o servo não sabe o que o seu senhor faz. Em vez disso, eu os tenho chamado amigos, porque tudo o que ouvi de meu Pai eu lhes tornei conhecido” João 15:15. Em qual contexto Ele disse isso? Exatamente durante sua última refeição com seus discípulos, durante horas de conversa ao redor de uma mesa, onde estavam assentados confortavelmente sobre almofadas. Vemos aqui a mais perfeita ilustração da palavra sôd no Novo Testamento, embora ela não esteja explícita no texto.  

Reclinado no peito do Mestre

Sôd fala de se tomar conselho ou se ter uma conversa íntima em um círculo familiar ou de amigos próximos. Isso requer tempo e um local aconchegante para se reclinar em um divã ou almofadas como era muito comum na Antiguidade. Reuniões desse tipo duravam horas e eram sempre acompanhadas de comida e bebida porque não se tinha horário de término. Essa é a ideia de reunião familiar ou de amigos, ou ainda de um conselho ou assembleia real, onde somente conselheiros dos reis e pessoas muito próximas a eles gozavam de tal prerrogativa. Eram tratados assuntos diversos ou simplesmente se desfrutava da companhia uns dos outros.

Essa era a cultura dos povos antigos e abarcava todas as classes sociais. Ressalta-se que tal costume ainda é observado em várias culturas do mundo contemporâneo, onde os convidados se assentam sobre almofadas no chão, cercados de comida e bebida, como ocorre nas culturas árabes e farsi, por exemplo. Esse ato se repete por toda a Bíblia, ainda que não se dê muita atenção a ele.

Voltemos para a última reunião de Yeshua com seus discípulos na noite em que foi traído. Era o seder de Pesach (Páscoa) e que ficou mais tarde conhecida como a Ceia do Senhor. Essa era, e ainda é na cultura judaica, uma refeição muito especial que inaugurava a Páscoa do Senhor e ocorria ao redor de um triclínio romano, uma mesa em U de baixa altura, onde o anfitrião e seus convidados se assentavam sobre almofadas dispostas ao redor para comer, beber e conversarem.[3]

Ali encontramos João (Yochanan), o discípulo amado, reclinado sobre o peito de Yeshua (João 13:23). Não era uma posição para qualquer pessoa, mas reservada ao discípulo que não somente gozava da confiança do Senhor, mas que também desejava essa proximidade. Tratava-se de uma posição privilegiada de poder ouvir o que sussurrava o Senhor. Talvez seja essa a maior diferença entre João, provavelmente o mais sensível espiritualmente falando, dos demais discípulos. Não causa admiração de saber que é justamente dele de quem recebemos o livro mais profético e revelatório de toda a Bíblia: o Apocalipse.

Amigo de Deus

A palavra sôd aparece em vários outros trechos das Escrituras. Em Jeremias 6:11, ela surge com a conotação de conversa entre amigos. Em Jeremias 23:18 e 22, surge como o conselho do Senhor, onde profetas o consultam e recebem de sua palavra. O Salmo 25:14 afirma que o segredo do Senhor é para aqueles que o temem. Provérbios 3:32 ensina que seu segredo está com os sinceros (AEC), ou que Ele tem intimidade com os sinceros (ARC), ou ainda que o justo é seu grande amigo (NVI).

O livro de Jó, provavelmente o mais antigo de todo o cânon sagrado, também contém sôd com essa conotação de intimidade e comunhão, quando diz: “Todos os meus amigos íntimos (sôd) me abominam” Jó 19:19. E ao dizer: “Ah! Quem me dera os dias da minha mocidade, quando a amizade (sôd) de Deus estava sobre a minha tenda” (Jó 29:4 – AEC). Esta é a imagem que melhor transmite o âmago de sôd. Deus e o profeta, seu companheiro, assentados sobre uma almofada em uma tenda, conversando e trocando confidências. Nenhuma imagem poderia ilustrar melhor o conselho ou o segredo do Senhor.

É justamente esse cenário que vamos encontrar no capítulo 18 de Gênesis. Abraão recebe a visita do Senhor juntamente com outros dois anjos nos  carvalhais de Manre, onde sua tenda estava montada. Não há dúvidas de que se trata de uma das manifestações de Yeshua no Velho Testamento, pois a palavra para Senhor não é nada menos que o tetragrama sagrado (יהוה), o nome próprio e misterioso de Deus, o qual ninguém sabe a não ser Ele mesmo.

Não se tratou de uma visita rápida, pois Abraão manda fazer pães, coalhada, além de mandar matar e assar um bezerro para os convidados. Foi uma visita que durou horas. Enquanto descansam em baixo de uma árvore para se refrescarem do escaldante calor do dia no meio do deserto, o Senhor e os dois anjos travam uma longa conversa com Abraão em que, certamente, muito foi falado, porém, pouco aqui transcrito. Na conversa, é dito a Abraão que Sara terá um filho, ainda que ambos fossem de idade bem avançada.

Em seguida, prestes a revelar seu plano de destruir Sodoma e Gomorra, o Senhor declara enfaticamente: “Ocultarei eu a Abraão o que faço?” (Gênesis 18:17). Essas palavras são ecoadas muitos séculos depois em Amós 3:7, de maneira mais genérica, para se referir aos profetas, aqueles que se assentam com o Senhor em seu conselho para ouvir seus segredos. A essência de sôd é capturada de forma bela nesse maravilhoso encontro.

Os dois anjos prosseguiram sua jornada para cumprir a missão de destruir as duas cidades impenitentes, porém, Abraão “permaneceu na presença do Senhor” (Gênesis 18:22). E ali, assentados confortavelmente próximos a tenda do patriarca de Israel, se dá um dos maiores diálogos entre Deus e o homem por toda a Bíblia. Em sua fala intercessora, Abraão chega a ponto de negociar pacientemente com Deus sobre a quantidade de pessoas a serem salvas. E, assim, consegue livrar seu sobrinho Ló e sua família da destruição que pendia sobre eles.

Somente alguém com intimidade suficiente e que desfrutasse da plena amizade do Senhor lograria êxito em obter seu favor em meio ao juízo iminente. Não é à toa que, mesmo muitos séculos depois, o próprio Senhor venha se referir a Abraão como “meu amigo”! (Isaías 41:8). Foi uma amizade conquistada com dedicação, no fogo da provação e da obediência, como se comprovou mais tarde. Nesse contexto, Yeshua também ensinou que seremos seus amigos se fizermos o que Ele nos manda (João 15:14).

Em um mundo de correria desenfreada e ritmo sempre acelerado, muitos ignorarão a ideia de se passar um longo tempo diário em comunhão com Deus. No entanto, Ele continua buscando aqueles que abrirão mão de tudo durante uma hora de seu dia para se achegar a Ele sem pressa, de forma demorada e prazerosa, que não se preocupam apenas em pedir, mas que têm satisfação mediante sua simples presença. Durante milênios, Ele tem buscado seus companheiros leais para uma longa e boa conversa, seja no meio do calor do dia ou na calada da noite. A esses, Ele irá revelar seus planos e seus segredos. Não basta ser filho, é melhor ainda ser amigo de Deus. Essa é a essência da palavra sôd.


[1] Número de Strong 5475.

[2] Número de Strong 3245.

[3] No capítulo 6 do livro A Oliveira Natural: As Raízes Judaicas do Cristianismo (Vol. 1), o seder de Páscoa, o triclínio romano em que ocorreu, a ordem em que se assentou Yeshua e seus discípulos, bem como as lições extraídas do dispositivo dessa refeição são abordados com profundidade e riqueza de detalhes.

Leia também:

Jesus e a Língua Hebraica – Parte 1

Jesus e a Língua Hebraica – Parte 2