A Falaciosa Teologia da Substituição

A Falaciosa Teologia da Substituição

28 de Outubro, 2021 2 Por Getúlio Cidade

É de amplo conhecimento que o relacionamento entre cristãos e judeus sempre foi conturbado ao longo da História. E sendo a História de certo modo cíclica, dotada de fatos e circunstâncias que tendem a se repetir, é inevitável que as gerações de hoje testemunhem, em maior ou menor grau, uma reprise de acontecimentos do passado, mas com outro pano de fundo. Como escreveu o autor de Eclesiastes, não há nada de novo debaixo do sol. Entretanto, em se tratando desse conturbado relacionamento, há uma grande responsável que, embora antiga, ainda é pouca conhecida dos cristãos. Refiro-me à falaciosa Teologia da Substituição.[1]

A Teologia da Substituição afirma que o povo de Israel foi rejeitado por Deus ao não receber Jesus como Messias e tê-lo assassinado. Tal rejeição teria anulado a aliança mosaica feita no Sinai e, logo, Israel teria deixado de ser o povo eleito, tendo sido substituído pela Igreja cristã com quem Deus fizera uma nova aliança, a partir do sacrifício de Cristo. Essa doutrina antijudaica alega que todas as promessas feitas a Israel desde a aliança abraâmica teriam sido transferidas para a Igreja.

Seus fundamentos foram lançados ainda no século II por Justino Mártir em seu Diálogo com Trifão. Aqui, Justino propõe em sua exegese que os cristãos são o “novo Israel” ou o “verdadeiro Israel”, termos constantes em suas argumentações. Essa teoria foi não somente aceita, mas replicada e amplificada por outros Pais da Igreja primitiva, formando a base doutrinária que serviu de solo fértil para o famigerado antissemitismo, contaminando a Igreja por cerca de 1900 anos.

No início do cristianismo, havia uma natural afinidade entre os cristãos e Israel, a nação da Torá. Porém, as ideias da Teologia da Substituição foram fermentando esse perigoso levedo e ganhando força com o tempo. Então, os Pais da Igreja Primitiva, com base nessa teologia, começaram a sufocar tal ligação. Dentre seus maiores defensores, está João Crisóstomo que, em suas famosas homilias, mostrou-se um dos agressores mais inflamados contra os judeus, a quem rotulou de “habitações de demônios, assassinos, sanguinários e piores que feras selvagens”.

A separação do cristianismo de Israel e suas raízes judaicas foi se dando, então, gradativamente, logo nos primeiros séculos da era cristã. Diversos concílios foram realizados com o propósito de consolidar tal separação, como o Concílio de Elvira (306 d.C) que, por exemplo, proibiu que judeus e cristãos casassem entre si ou simplesmente compartilhassem refeições. Em 315 d.C, outro edito do Império Romano permitiu queimar judeus que fossem condenados por infringir as leis.

No Concílio de Niceia (325 d.C), desvinculou-se a data da Páscoa bíblica para uma data que coincidisse com um domingo, passando a Igreja a celebrá-la em uma data móvel. Em uma carta circular, o imperador Constantino I esclarece que o motivo de tal separação era não celebrar a festa na mesma data que os judeus, “assassinos de Nosso Senhor”.

O Concílio de Laodiceia, em 364 d.C, proibiu os cristãos de guardar o Sábado, o que era observado pelos cristãos desde o século I, em cumprimento ao quarto mandamento. Essas e outras proibições e restrições foram confirmadas nos vários concílios da Igreja nos mil anos seguintes, aumentando propositadamente, cada vez mais, o fosso entre cristãos e judeus.

FALSAS ALEGAÇÕES TEOLÓGICAS

A fim de justificar a teoria de que Deus rejeitara Israel, embora o próprio apóstolo Paulo afirma categoricamente que isso não tenha ocorrido (Romanos 11:1), trechos isolados do Novo Testamento foram distorcidos e usados para justificar essa suposta rejeição de Israel e a admissão da Igreja em seu lugar, como a seguinte passagem:

“Porque não é judeu o que o é exteriormente, nem é circuncisão a que o é exteriormente na carne. Mas é judeu o que o é no interior, e circuncisão a que é do coração, no espírito, não na letra; cujo louvor não provém dos homens, mas de Deus” Romanos 2:28,29. Em que ponto desse texto se afirma que Deus rejeitou Israel e introduziu a Igreja em seu lugar? Paulo diz apenas que os verdadeiros judeus são aqueles que servem a Deus não exteriormente, mas de coração. Daí afirmar que a Igreja substituiu Israel é um completo disparate. No entanto, essa é uma das passagens frequentemente usadas, até de forma involuntária, por aqueles que tentam defender essa ideia absurda.  

A Teologia da Substituição ensina que todas as promessas feitas a Israel no Velho Testamento são agora de propriedade da Igreja. E que tais promessas não devem ser interpretadas literalmente, mas simbolicamente ou alegoricamente. Assim, referências a Israel, Jerusalém, Sião e ao Templo diriam respeito apenas à Igreja de Cristo, com a exclusão do povo judeu, embora em nenhum lugar nas Escrituras isso esteja explícito.

Há, porém, um sério problema com essa teologia. Se Deus realmente rejeitou Israel, como explicar seu renascimento como Estado moderno após dezenove séculos? Nenhuma nação ou povo antigo que tenha sido disperso, como foi Israel por duas diásporas, ou chegado à beira da extinção, conseguiu renascer mais tarde com a mesma força e vigor de outrora, incluindo o ressurgimento da língua falada, como é o caso do hebraico moderno.

E como explicar o cumprimento literal das profecias relacionadas aos tempos do fim, a partir do final do século XIX até hoje, que tratam do retorno da Casa de Jacó para sua terra natal (Israel) bem como de sua restauração, conforme predito por profetas como Isaías, Jeremias e Ezequiel?[2]

Além disso, como pode uma teologia contrariar a própria Bíblia? Na carta aos Romanos, no capítulo 11, o apóstolo Paulo afirma justamente o contrário, alegando que Israel é a raiz que sustenta a Igreja gentílica e não o contrário. Os capítulos 9, 10 e 11 de Romanos são especiais em todas as Escrituras no que tange a Israel; devem ser lidos e compreendidos com o foco e contextos corretos. A propósito, se a Teologia da Substituição fosse válida, bastaria trocar “Israel”, em todas as vezes que esse nome aparece na carta, por “Igreja”. Ao se fazer isso, verifica-se que o texto, então, perde completamente o sentido. Chega a ser patético. É uma teoria que não se sustenta com o mínimo escrutínio das Escrituras.

O Novo Testamento fala do relacionamento da Igreja para com Israel como sendo “enxertados” (Rm 11:17), “trazidos para perto” (Ef 2:13), “descendência de Abraão pela fé” (Rm 4:16) e “participantes das bênçãos espirituais” (Rm 15:27). A Igreja herdou tudo isso pela fé, mas NÃO usurpou nem substituiu o Israel físico! Afirmar o oposto é ir de encontro ao ensino de todas as Escrituras. As promessas feitas a Israel no Novo Testamento continuam firmes, não foram revogadas por Jesus, nos Evangelhos, nem pelos apóstolos em suas cartas. Muito pelo contrário, Deus nunca rejeitou Israel (ver Romanos 11:1,29).

NEFASTAS CONSEQUÊNCIAS

A Teologia da Substituição é a grande responsável pelo ódio dirigido aos judeus ao longo de quase dois milênios, gerando feridas profundas e danos irreversíveis como ocorreu com as Cruzadas. Esses movimentos por combatentes que se nomeavam “soldados de Cristo”, ocorridos entre os séculos XI e XIII, com direção da Europa para a Terra Santa, buscavam dominar esta à força, matando, em seu percurso, milhares de judeus.

Os tentáculos dessa infame teologia também são vistos na tenebrosa Inquisição que visava combater as heresias praticadas em sua grande parte por judeus. Entre os séculos XIII e XIX, levou dezenas de milhares à incineração em praças públicas, onde as vítimas eram queimadas vivas em ato de máxima penitência — um espetáculo sinistro e dantesco. E seus algozes cuidavam estar prestando um serviço a Deus!

Em pleno século XX, as sementes de ódio da Teologia da Substituição prosseguiram dando seus malditos frutos no episódio mais bárbaro e hediondo da História, em que o pecado mortal de nascer judeu levou ao genocídio de seis milhões de pessoas, incluindo nessa cifra um milhão e meio de crianças.[3] Infelizmente, em nosso presente século, essa teologia continua a infectar muitas mentes mundo afora.

Se a Igreja tivesse compreendido desde o início o significado de ser enxertada na Oliveira Natural, o terrível legado de antissemitismo poderia ter sido evitado. Essa maldita doutrina, entranhada no seio da Igreja desde o início, desconhecida mas professada inconscientemente pela maioria, não apenas nos privou da riqueza de nossas raízes, mas nos tornou instrumentos de ódio e soberba contra a semente natural de Abraão.  

Voltando a Paulo, judeu e apóstolo da Igreja gentílica, Israel jamais foi substituído pela Igreja, mas é justamente a raiz que sustenta esta Igreja. E, como gentios, não devemos nos orgulhar de termos sido enxertados, mas demonstrar amor pelos ramos naturais (Rm 11:16-18, 28). O cristianismo nunca foi uma árvore autônoma e isolada, mas tem suas raízes no judaísmo, tendo sido enxertado por Deus na Oliveira Natural que é e sempre foi Israel.

“Assim diz o Senhor, que dá o sol para luz do dia, e as ordenanças da lua e das estrelas para luz da noite, que agita o mar, bramando as suas ondas; o Senhor dos Exércitos é o seu nome.
Se falharem estas ordenanças de diante de mim, diz o Senhor, deixará também a descendência de Israel de ser uma nação diante de mim para sempre.
Assim disse o Senhor: Se puderem ser medidos os céus lá em cima, e sondados os fundamentos da terra cá em baixo, também eu rejeitarei toda a descendência de Israel por tudo quanto fizeram, diz o Senhor.”

Jeremias 31:35-37


[1] Uma versão reduzida deste artigo foi publicada no jornal O Estadão em 26/09/2021.

[2] Ver Isaías 11:11-12; 43:5-6; 49:22-23; 60:9-11; Jeremias 16:14-16; Ezequiel 36 e 37:1-14; etc.

[3] O capítulo 2 do livro A Oliveira Natural: As Raízes Judaicas do Cristianismo contém um estudo histórico com maior profundidade sobre os diversos eventos que conduziram a uma separação crescente entre cristãos e judeus.


Referências

Christine Shepardson, Anti-Judaism and Christian Orthodoxy. Washington D.C.: The Catholic University of America Press, 2008.

Clarence H. Wagner, Jr., Lessons from the Land of the Bible, Jerusalém: Bridges for Peace, 1998.

Clarence H. Wagner, Jr., The Error Of Replacement Theology, Jerusalém: Bridges for Peace, 2002.

Philip Schaff, History of the Christian Church, Vol. II: From Constantine the Great to Gregory the Great A.D. 311-600. New York: Charles Scribner, 1867.


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