Purim: Quando Deus esconde sua Face

5 de Março, 2021 6 Por Getúlio Cidade

A Festa de Purim ocorreu há alguns dias e há muito que se escrever sobre essa história tão incrível, ocorrida há cerca de 2.500 anos, que nos ensina várias lições. A trama ocorre fora de Israel e envolve todos os judeus no reino da Pérsia antiga, durante o reinado de Xerxes, em algo que bem poderia ser um longa metragem de drama, ou policial, ou ação, ou uma combinação de tudo isso. Agora, porém, gostaria de me desprender um pouco do roteiro dessa trama, já discutido em artigo anterior, e me ater a um dos maiores mistérios de Megilat Ester (pergaminho de Ester), como é conhecido esse livro. Refiro-me ao grande mistério de Purim: Quando Deus esconde sua face.

Embora seja um livro canônico, integrante da Tanach (Bíblia judaica que equivale ao Velho Testamento cristão), nunca foi contestado por ser um livro sagrado sem nele constar o nome do único Deus de Israel. A resposta é relativamente simples. Embora não contenha o nome do Todo-Poderoso, nem as variantes de seu nome no hebraico, nem mesmo a mínima referência a ele, sua atuação por toda a narrativa é inegável e inconteste. Não se vê seu nome, mas todos sabem que Ele está ali, como um artista em um teatro de marionetes, escondido por trás da cortina preta, controlando seus personagens, suas ações e até suas falas em cada ato de uma peça teatral fascinante.

Aliás, esse é um dos motivos de se usar máscaras nas celebrações de Purim. É uma menção a Deus escondendo a face de seu povo, sem, porém, tirar seus olhos de sobre ele. Pois essa foi a sensação que todo o povo judeu espalhado pelo império teve, desde a ascensão de Hamã à posição de primeiro príncipe. Havia uma data marcada para o extermínio de toda a semente de Abraão. Todos estavam plenamente conscientes da ameaça de morte pendente sobre suas cabeças, tal qual uma nuvem negra e carregada que se aproxima no horizonte prenunciando uma tempestade destruidora. O decreto estava assinado e nada faria o rei voltar atrás. Parecia mesmo que Deus se esquecera da promessa feita aos patriarcas e escondera sua face de Israel, deixando-o entregue ao ódio de seus inimigos. Não é à toa que os sábios judeus escreveram que o livro de Ester foi escondido na Torá vários séculos antes de ser escrito, em Deuteronômio 31:18 (AEC), onde o Senhor diz: “Esconderei, pois, totalmente o meu rosto naquele dia […].

O curioso é que esse sentimento de abandono se repetiu outras vezes ao longo da História como durante o período das Cruzadas, na Inquisição da Idade Média e no Holocausto, entre outros. O mesmo sentimento de agonia e desespero tomou os judeus de assalto nessas ocasiões. Teria Deus realmente escondido sua face de seu povo, ainda que sua misericórdia dure para sempre? Isso também nos soa familiar. Quantas vezes, em meio a crises, nos fazemos a mesma pergunta? Podemos não ter dito em voz alta, mas questionamos em nosso íntimo se Deus realmente estava presente quando algo muito ruim nos ocorreu, ou se se escondeu de nós como parece ter feito com Israel.

TRÊS LIÇÕES DE PURIM

Embora haja muitas lições espirituais a serem aprendidas nesse livro fantástico, vou abordar apenas três aprendizados que podem ser extraídos da história de Purim e sua aplicação prática na vida cristã.

A primeira lição nos é dada pela vida de Hamã, descendente de Amaleque e inimigo número um de Israel. Mesmo sendo um homem maligno, ele é promovido pelo rei, extravasa seus intentos assassinos contra todo um povo e parece próspero, prestigiado e incólume, sem nenhum mal lhe tocar. No entanto, sua sorte muda do dia para noite quando sua verdadeira face é exposta e termina enforcado na forca que ele mesmo projetou para Mordecai.

Uma das perguntas que mais afligem o homem de bem é por que o homem mal prospera e parece ficar impune? É uma pergunta legítima e tem sido feita desde que o homem foi colocado na face da Terra. Os genuínos homens de Deus que caminharam por aqui se fizeram a mesma pergunta, de várias formas e lamentos. Jó, em seus questionamentos intermináveis ante o sofrimento, perguntou a Deus: “Por que razão vivem os ímpios, envelhecem e ainda se tornam mais poderosos? […] O castigo de Deus não está sobre eles” (Jó 21:7,9 – AEC).

Asafe, o salmista, foi acometido do mesmo sentimento ao afirmar: “tive inveja dos soberbos, ao ver a prosperidade dos ímpios”; e “são assim os ímpios; sempre em segurança e as suas riquezas aumentam” (Salmo 73:3,12 – AEC). Jeremias faz ecoar a pergunta de Jó ao dizer: “Por que prospera o caminho dos ímpios: Por que vivem em paz todos os que procedem perfidamente?” (Jeremias 12:1 – AEC). Certamente Mordecai teve o mesmo pensamento ao ver Hamã prosperando na corte, cheio do favor do rei, enquanto ele mesmo não havia sido reconhecido por livrar o próprio rei da morte ao revelar a trama para matá-lo.

Entretanto, o fim do homem mau é terrível, um mergulho na escuridão eterna, longe de Deus e de toda sua luz, seu fim é de pavor e lágrimas. O próprio Asafe parece responder sua pergunta ao dizer: “Certamente, tu os pões em lugares escorregadios; tu os lanças em destruição. Quão repentinamente são destruídos, totalmente consumidos de terrores!” (Salmo 73:18-19 – AEC). Foi assim com Hamã. Sua riqueza e honra eram passageiras. Toda a fortuna e fama acumuladas não passavam de um castelo de areia próximo às ondas do mar. Foi envergonhado, enforcado e todos seus filhos com ele. Não lhe sobrou nada no final, exposto à miséria humana, ao terror e às trevas perenes.

Por mais que os homens maus nos fustiguem e pareçam prosperar, estão condenados não somente ao fracasso, mas a um fim calamitoso como foi com Hamã. Não devemos olhar para a momentânea prosperidade do ímpio, mas, sim, temer e obedecer a Deus, pois grande recompensa há nisso. Salomão, no auge de sua sabedoria divina, conhecia esse questionamento que aflige a humanidade e escreveu seu parecer inspirado pelo alto: “Ainda que o pecador faça o mal cem vezes, e os dias se lhe prolonguem, sei com certeza que bem sucede aos que temem a Deus, aos que são reverentes diante dele. Mas ao ímpio não irá bem, e ele não prolongará os seus dias; será como a sombra, visto que não teme diante de Deus” (Eclesiastes 8:12-13 – AEC). Como mostra o destino de Hamã, assim se dará com todo aquele que não teme a Deus e pratica o mal crendo que permanecerá impune.

A segunda lição está no posicionamento de Ester em não se acovardar ao ver o mal florescer e ameaçar seu povo. Quando ela cai em si com a exortação de Mordecai, vai até o rei interceder por seu povo, embora saiba que isso pode lhe custar a vida. Para isso, pede que o povo judeu jejue por ela. Ester, como sombra da Noiva do Messias, nos ensina a ter ousadia para se achegar ao rei e obter seu favor.

Como membros do corpo de Cristo, temos esse acesso ao Rei dos reis o dia e à hora que desejarmos. O autor de Hebreus, provavelmente Paulo, nos insta a entrar com ousadia no Santo dos Santos, pelo sangue de Jesus, pelo novo e vivo caminho que nos deu acesso a Deus (Hebreus 10:19-20 – AEC). Não precisamos temer a morte, mas buscar com ousadia o caminho da vida eterna. Não devemos nos calar perante o mal nem a injustiça. Precisamos assumir publicamente o lado certo e, principalmente, comparecer perante o rei para interceder por justiça. Precisamos conhecer o verdadeiro valor da oração e do jejum, inspirados na atitude de Ester. O Rei da Glória nos aguarda de braços abertos que compareçamos diante dele para apresentar nossas causas e nos conceder seu favor.

A terceira lição nos ensina que, não importa quão terrível seja a provação, o Senhor sempre dará um livramento no final, ainda que pareça que Ele tenha nos abandonado à nossa própria sorte. Foi assim com Israel quando se viu ameaçado pelo decreto genocida de Hamã. A história dos amigos de Daniel na fornalha de fogo nos ensina o mesmo. Sua fé e sua fidelidade a Deus eram tão grandes que, não somente se recusaram a se prostrar diante da imagem de Nabucodonosor, mas estavam prontos a morrer pelo que criam, independente de um livramento divino. Quando indagados pelo rei, disseram: “Se formos lançados na fornalha de fogo ardente, o nosso Deus, a quem nós servimos, pode livrar-nos dela, e ele nos livrará da tua mão, ó rei. Se não, fica sabendo, ó rei, que não serviremos a teus deuses, nem adoraremos a estátua de ouro que levantaste” (Daniel 3: 17-18 – AEC). Que declaração de fé maravilhosa!

Precisamos ser corajosos e compromissados como eram esses homens que, literalmente no fogo da provação, não negaram sua fé. Deus foi fiel para livrar aqueles jovens íntegros no final, assim como foi para livrar Israel das mãos de Hamã. Toda prova, por mais dura que seja, tem um propósito divino em nossas vidas e todas as coisas, boas ou más, cooperam para aqueles que amam a Deus (Romanos 8:28 – AEC). O livramento sempre chega no final. Mordecai parece que era o único que sabia disso ao dizer a Ester que, se ela se omitisse, o livramento viria de outra forma, pois Deus não permitiria o extermínio de seu povo. Os judeus do império persa achavam que chegara o fim, que dessa vez não haveria escape, que Deus realmente se escondera e não podia ser achado. Porém, ainda que seu rosto esteja escondido, seu braço forte aparece para livrar. Não depende de pessoas influentes, não depende de conhecimento ou poder, não depende de bens ou dinheiro, mas somente Adonai é poderoso para livrar.

Muitas vezes, a manifestação divina se dá com poder sobrenatural como no Mar Vermelho que se abriu para o povo atravessar, ou como no confronto épico de Elias com os profetas de baal, quando fez chover fogo do céu. Entretanto, nem sempre será assim. Há vezes em que o Senhor opera silenciosamente, como que distante, com a face escondida de nós como na história de Ester, o que não significa que esteja alheio ao que acontece. Ali, uma série de “coincidências” ocorrem de maneira tão inacreditável que desafiam a própria ordem natural das coisas, o que não deixa de ser também uma forma sobrenatural de ocorrência dos fatos. O artista principal não aparece, mas está operando nos bastidores, controlando tudo e todos.

O fim da história, em especial, o destino de Hamã e o destino de Mordecai, me faz lembrar as palavras do profeta Malaquias: “No dia em que eu agir, diz o Senhor dos Exércitos, eles serão o meu tesouro pessoal. Eu terei compaixão deles como um pai tem compaixão do filho que lhe obedece. Então vocês verão novamente a diferença entre o justo e o ímpio, entre os que servem a Deus e os que não o servem” (Malaquias 3:17-18 – NVI). Quando estiver atravessando uma provação e tiver a sensação de que Deus escondeu sua face, lembre-se da história de Ester. Estando ou não com o rosto escondido, o Senhor livra os que nele põem sua confiança. E isso é suficiente para fortalecer nossa fé e renovar nossa esperança. Essa é a essência de Purim.


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