Os Justos entre as Nações

Os Justos entre as Nações

10 de Outubro, 2021 0 Por Getúlio Cidade

Nove de outubro de 2021 marca o aniversário de 47 anos da morte de Oskar Schindler, o empresário alemão que ficou mundialmente conhecido por sua famosa Lista envolvendo cerca de 1100 judeus que conseguiu salvar da morte certa em um dos episódios mais tenebrosos da História: o Holocausto. É uma ocasião propícia para discorrer um pouco mais sobre ele e outros heróis do Holocausto, mais conhecidos entre os judeus como os Justos entre as Nações.

Justos entre as Nações é um termo de origem rabínica que originou a honraria concedida pelo Estado de Israel aos não judeus (gentios) que arriscaram a vida para salvar judeus do extermínio nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Desde 1963, existe uma comissão responsável por identificar e conceder esse título honorário que independe de posição social, tendo sido dado a personalidades da realeza bem como a pessoas comuns e desconhecidas. O que elas tinham em comum era o senso moral que as obrigavam a fazer algo diante da injustiça e crueldade que infestavam o mundo a seu redor.

A pessoa honrada tem seu nome inscrito no Muro da Honra do Yad Vashem (Museu do Holocausto de Jerusalém) e uma árvore plantada em sua homenagem no Jardim dos Justos, localizado no mesmo museu. Desde a instauração dessa comissão pelo governo israelense, milhares de gentios receberam essa honraria. O mais famoso de todos é certamente Oskar Schindler, cuja história se tornou amplamente conhecida após o épico filme A Lista de Schindler, de Steven Spielberg, ter sido lançado em 1993.

A LISTA DE SCHINDLER

No início dos anos 1930, Oskar Schindler se tornou membro do partido nazista e passou a trabalhar para a inteligência alemã. A experiência que adquirira na companhia de seu pai o preparou para ser um empresário bem sucedido. Seu faro empresarial o fez se mudar para a Cracóvia logo após a invasão alemã, em setembro de 1939, onde começou a explorar o negócio da guerra. Logo adquiriu uma fábrica de artigos esmaltados, onde lucrava com a venda para as forças alemãs.

Além do talento natural para negócios, Schindler era um homem de boa comunicação e de fácil relacionamento. Soube aproveitar bem essa característica de seu temperamento para estabelecer certo tráfico de influência entre os militares alemães em favor de seus negócios, o que era sempre acompanhado de subornos. Em Cracóvia, conheceu um talentoso contador judeu, Itzhak Stern, que foi o elo entre Schindler e a comunidade judaica local. Foi daí que grande parte foi recrutada para trabalhar em sua fábrica.

Oskar Schindler

À medida que os negócios prosperavam, aumentava o número de funcionários. No início, Schindler dava prioridade aos trabalhadores judeus simplesmente por sua mão-de-obra ser mais barata que a dos poloneses comuns. Porém, ao ver a escalada da crueldade nazista contra os judeus, buscou empregar o máximo deles que pôde, incluindo crianças e idosos, independentemente de suas habilidades. Esses judeus ficaram conhecidos como Schindlerjuden (judeus de Schindler).

Em 1942, quando os nazistas começaram e transferir os judeus de Cracóvia para campos de trabalho forçado, Schindler usou toda sua influência para impedir que centenas de seus funcionários, incluindo Ytzhak Stern, fossem realocados. Foi um episódio de coragem e tensão quando foi à estação de trem confrontar os oficiais da SS, alegando que aquelas pessoas eram necessárias ao esforço de guerra. Por fim, ele conseguiu a liberação de todos os Schindlerjuden.

Em 1943, após o infame episódio do massacre do gueto de Cracóvia, quando dois mil judeus foram exterminados, o restante que podia trabalhar foi levado para o campo de Plaszow, dentre eles, grande parte dos funcionários de Schindler. Pelo bom relacionamento que possuía com o comandante do campo, um facínora e psicopata, Schindler conseguiu suborná-lo diversas vezes para preservar a vida de seus trabalhadores.

Na final da guerra, em 1944, todos os judeus de Plaszow seriam transferidos para o campo de extermínio de Aushwitz. Ao tomar conhecimento disso, Schindler pediu permissão para realocar sua fábrica para a região dos Sudetos a fim de produzir armamento para o esforço de guerra alemão. Foi nessa ocasião que apresentou sua lista com mais de 1100 judeus, montada com a ajuda de Itzhak, que seriam deportados para a morte. À custa de muito suborno e negociação, conseguiu permissão para realocar os Schindlerjuden para o novo local da fábrica, alegando que eram essenciais ao esforço de guerra.

Longe de querer contribuir para tal esforço, na nova fábrica, Schindler orientou seus funcionários a produzir artigos defeituosos de propósito para que não passassem nos testes de qualidade. Embora fosse classificada como fábrica de armamento, em cerca de oito meses, foi produzido apenas um vagão de munição. No entanto, Schindler justificava sua existência apresentando dados falsos de produção às autoridades alemãs. Assim, os judeus permaneceram na fábrica, que passou a ser um abrigo disfarçado, onde tiveram alimentação e proteção até o último dia da guerra.

Oskar Schindler planta uma árvore na Avenida dos Justos entre as Nações, no Yad Vashem, em 1962. Foto: Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos.
Cortesia de Leopold Page Photographic Collection.

Logicamente, Schindler gastou seus recursos para salvar e sustentar os judeus durante vários meses enquanto tinha prejuízo em sua produção de fachada, o que o levou à bancarrota. Mesmo após a guerra, ele nunca mais conseguiu se reerguer como um empresário de sucesso, chegando a contar com o favor dos próprios judeus que salvou para se sustentar. Em 1962, Schindler recebeu o título de Justo entre as Nações pelo governo de Israel. No dia 9 de outubro de 1974, veio a falecer e seu corpo foi sepultado na cidade de Jerusalém, em cumprimento ao desejo final que fizera constar em seu testamento. Participaram de seu cortejo fúnebre vários Schindlerjuden, incluindo o fiel contador e amigo Ytzhak Stern.

Local da árvore plantada por Oskar Schindler no Jardim dos Justos, Yad Vashem, Jerusalém (Foto do autor, 2004).

HEROÍNAS DE GUERRA

Irena Sendler

Entre outros milhares de Justos entre as Nações, duas mulheres merecem destaque. A primeira é Irena Sendler, uma assistente social polonesa. Após a invasão alemã, em função de seu trabalho, ela tinha acesso ao Gueto de Varsóvia onde centenas de milhares de judeus haviam sido confinados. Lá, juntamente com cerca de outras vinte colegas que faziam parte de sua organização de assistência social — todas assumindo um enorme risco — firmaram o propósito de salvar o máximo de crianças da morte no gueto, ou da deportação para os campos de concentração.  

Irena e suas colegas criaram várias formas para contrabandear crianças para fora do gueto: em caixotes ou sacos de batata, algumas em ambulâncias, ou por túneis subterrâneos. Algumas crianças saíam por uma igreja católica que ultrapassava os limites do gueto. As que saíam eram levadas para conventos ou para famílias não judias que as recebiam e as escondiam sob nova identidade. O plano de Irena era reunir as crianças com seus pais quando a guerra terminasse. Entretanto, a maioria dos pais morreu.

Ela chegou a ser presa e torturada para revelar o nome de suas companheiras, mas se recusou, sendo condenada à morte. No entanto, sua organização subornou os guardas e ela foi liberta, prosseguindo seu trabalho de resgate até o fim da guerra. Estima-se que Irena e suas colegas salvaram cerca de 2500 crianças no total. Em 1965, Irena Sendler recebeu o título de Justa entre as Nações em reconhecimento por seu empenho e coragem na salvação de crianças judias, sendo ela própria um verdadeiro milagre ter sobrevivido à terrível provação. Irena viveu até os 98 anos, morrendo em Varsóvia, em 2008.

A segunda heroína chama-se Corrie Ten Boom, uma holandesa de Amsterdã que vivenciou a invasão nazista nos Países Baixos durante a guerra. Ela e sua família eram calvinistas da Igreja Reformada holandesa e possuíam uma relojoaria na cidade, onde viviam em quartos acima da loja. Durante a invasão, sua casa se tornou um refúgio para os judeus. Um quarto secreto não maior que um guarda-roupas, foi construído no quarto de Corrie por trás de uma parede falsa, capaz de alojar até seis pessoas.

Corrie Ten Boom

Alguns judeus fugitivos da Gestapo ficavam ali por algumas horas, enquanto outros ficavam por dias até que pudessem encontrar outro refúgio seguro. A própria Corrie se tornou uma supervisora de uma rede de casas seguras por toda a Holanda que alojassem judeus que viviam em contínua fuga. Estima-se que tal rede tenha sido responsável por salvar cerca de oitocentos judeus.

Em 1944, um informante holandês denunciou as atividades da família Ten Boom e a Gestapo invadiu sua casa, prendendo toda a família. O pai de Corrie morreu na prisão, enquanto ela e sua irmã Betsie foram enviadas para o campo de concentração de Ravensbrück, na Alemanha. Betsie morreu lá em dezembro do mesmo ano e Corrie foi liberta após doze dias por razões desconhecidas.

Após a guerra, ela voltou para a Holanda onde fundou um centro de reabilitação para sobreviventes dos campos de concentração e registrou suas experiências no livro O Refúgio Secreto. Em seguida, iniciou um ministério cristão internacional que percorreu sessenta países. Em 1967, foi honrada pelo governo de Israel com o título de Justa entre as Nações. Corrie faleceu no dia de seu aniversário de 91 anos, em 15 de abril de 1983, evocando uma crença judaica tradicional que afirma que apenas pessoas especialmente abençoadas têm o privilégio de morrer na data em que nascem.

“AQUELE QUE SALVA UMA VIDA, SALVA O MUNDO INTEIRO”

Um empresário bem sucedido e membro do partido nazista, Schindler era um improvável candidato a herói em tempos de paz. No entanto, ao vivenciar o terror do genocídio promovido por seus compatriotas, deixou de lado suas ambições, seus bens e suas finanças para salvar todos os judeus que estavam a seu alcance. Preferiu não seguir na corrente da maioria, infectada por uma ideologia racista e hedionda, mas arriscou a própria pele para fazer o que julgava correto, de acordo com sua consciência.

A guerra revelou o verdadeiro caráter de Schindler. As dificuldades mostram o que há de melhor ou pior em cada indivíduo. As fornalhas da vida são autênticas provas por intermédio das quais nossos valores são testados, deixando à mostra nosso homem interior. Os Justos entre as Nações nos ensinam que cada pessoa individualmente pode fazer a diferença em um mundo assolado por trevas e maldade.

Há um provérbio de Salomão que diz: “Liberte os que estão sendo levados para a morte; socorra os que caminham trêmulos para a matança!”. Provérbios 24:11 Ao livrar centenas de judeus da condenação de uma morte terrível e certa, Schindler, Irena Sendler, Corrie Ten Boom e tantos outros cumpriram esse mandamento à exaustão, arriscando tudo o que possuíam, inclusive a própria vida. Certamente, ensinaram ao mundo o que é amar o próximo e agradaram a Deus com esse mesmo amor e zelo demonstrados em uma das horas mais escuras da História da humanidade.

Se apenas uma só vida possui um valor inestimável para Deus, nosso Pai, quanto mais milhares delas! É como diz o ditado talmúdico inscrito no anel de ouro feito de uma ponte dentária, extraída da boca de um dos judeus salvo por Schindler, a quem presentearam no momento de sua despedida, ao término da guerra: “Aquele que salva uma vida, salva o mundo inteiro”.


Referências

Biografia de Corrie Ten Boom. Disponível em: Corrie ten Boom – Life, Quotes & The Hiding Place – Biography

Biografia de Irena Sendler. Disponível em: Irena Sendler – Death, Husband & Facts – Biography

Thomas Keneally, A Lista de Schindler. São Paulo: Círculo do Livro, 1993.

Yad Vashem, About the Righteous. The World Holocaust Remembrance Center. Disponível em: About the Righteous (yadvashem.org)


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Assista à cena final do filme A Lista de Schindler, quando Oskar Schindler (Liam Neeson) se despede dos judeus que salvou ao término da guerra e recebe um anel de presente.

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