A Túnica Real e o Ódio Fraterno

A Túnica Real e o Ódio Fraterno

18 de Fevereiro, 2022 10 Por Getúlio Cidade

A história de José filho de Jacó é bem conhecida, seus sonhos, o ciúme de seus irmãos e o drama vivido no Egito até ascender à posição de vice-rei. As Escrituras deixam claro que ele tinha o favor de seu pai que lhe dera uma bela túnica que representava certa realeza, como um prenúncio de seu destino. Isso, por sua vez, fez com que seus irmãos o odiassem a ponto de não poderem falar com ele pacificamente. Embora seja uma longa história, gostaria de me ater apenas sobre a túnica real e o ódio fraterno que aparece algumas vezes nas Escrituras.

Gênesis 37 relata essa relação conturbada entre José e seus irmãos. Duas coisas incitam o ódio deles. José é um sonhador de apenas dezessete anos, imaturo demais por compartilhar abertamente seus sonhos, sem saber que, por todo lado, há pessoas que o invejarão e farão de tudo para impedir que seus sonhos se realizem. O duro é constatar que tais pessoas sejam seus próprios irmãos. Isso permanece verdade ainda hoje, pois a natureza perversa do homem é a mesma desde a criação. Portanto, muito cuidado com quem você compartilha seus sonhos.

O outro fator causador desse ódio está em uma bela túnica feita por Jacó para presentear José, o que denotava sua predileção por ele. Algumas traduções dizem que essa era uma túnica de várias cores. Entretanto, a palavra composta na Torá para defini-la é ketonet passim (כתנת פסים) e pode significar uma túnica de várias cores, ou uma túnica longa até os pés, ou uma túnica de mangas longas que chegue até a palma das mãos, ou ainda uma túnica ornamentada. Não se pode dizer ao certo como era, porém, sabemos que era uma vestimenta especial, uma túnica que representava realeza. Por ela, Jacó demonstrava que José era um filho especial, não melhor do que os outros, porém, especial. Era o primogênito de sua amada Raquel que já havia falecido, além de ser o filho de sua velhice. Seus irmãos não compreendiam isso e, em vez de se alegrarem com seu pai, preferiram invejá-lo e odiá-lo.  

Os filhos de Jacó vão para Siquém apascentar o rebanho de seu pai e, após um tempo, ele envia José a eles a fim de saber como estavam e lhe trazer notícias. No percurso, José encontra um homem no campo que aparentemente andava sem rumo. Ao ver José, ele se antecipa e lhe pergunta por quem procura. José responde: “Procuro meus irmãos”. Esse homem estranho indica-lhe o caminho para Dotã. José segue sua direção e lá encontra seus irmãos.

A tradição judaica diz que esse homem estranho com quem José se depara no campo era ninguém menos que o anjo Gabriel. É interessante pensar nisso porque esse encontro aparentemente fortuito definiu o destino da nação de Israel. Não fosse por ele, José não teria encontrado seus irmãos, não teria sido vendido para o Egito e os patriarcas das doze tribos não teriam sobrevivido à fome que assolou a terra anos mais tarde. Longe de ser um acaso, esse encontro se mostrou crítico para a sobrevivência do povo de Israel. O próprio José, muitos anos depois, ao se revelar a seus irmãos, afirma que fora Deus quem o levara para o Egito a fim de preservá-los com vida.

Jamais José poderia imaginar que um simples encontro definiria seu destino bem como de seu povo. Os propósitos de Deus, na maioria das vezes, passam por detalhes similares, os quais somos incapazes de reconhecer. No desdobrar dos acontecimentos, porém, revelam-se decisivos e cruciais. Deus é detalhista e parece gostar de operar seus planos dessa maneira.

Ao chegar a Dotã, os irmãos de José avistam-no de longe, conspirando para matá-lo. Porém, em vez disso, acabam por decidirem lançá-lo em uma cisterna vazia e a primeira coisa que fazem é remover-lhe a túnica. A mesma túnica especial feita carinhosamente por seu pai é arrancada dele como se assim pudessem remover o favor de Jacó e despi-lo de seus sonhos. Essa será a mesma túnica que os irmãos usarão para enganar seu pai, matando um cabrito e molhando-a em seu sangue para montar a farsa de que José fora despedaçado por alguma fera selvagem. Assim permaneceu Jacó enganado a respeito de seu filho amado por cerca de 22 anos, sem saber que fora vendido como escravo para uma caravana de ismaelitas que descia para o Egito.

É doloroso imaginar o sofrimento de Jacó por seu amado José. O engano que sofreu de seus próprios filhos, no entanto, foi resultado de sua própria semeadura quando ainda jovem. Nessa ocasião, e em conluio com sua mãe Rebeca, Jacó montou uma farsa para enganar seu pai Isaque e roubar a bênção da primogenitura, vestindo-se com as roupas de seu irmão Esaú. Agora e também por meio de uma vestimenta, ele era enganado a respeito do paradeiro do filho de sua velhice. E seu sofrimento foi bem maior e mais prolongado que o do engano causado a Isaque. “Tudo o que o homem semear, isso também ceifará.” Gálatas 6:7 E os que semeiam vento, colhem tormentas (Os. 8:7).

UMA PRINCESA EM DESGRAÇA

A única vez em que o termo ketonet passim volta a aparecer nas Escrituras é em 2Samuel 13:18, na túnica usada por Tamar, filha do rei Davi, cerca de sete séculos mais tarde. Aqui ela foi traduzida por túnica ornamentada e, nesse tempo, era usada apenas pelas filhas virgens dos reis, o que reforça o fato de que era uma túnica bem especial, de realeza, mostrando o favor do rei por quem a usava.

Como relata a história, Tamar foi estuprada por seu irmão por parte de pai, Amnon, um dos episódios mais lastimosos do reinado de Davi. Após esse ato hediondo, ela rasga sua bela túnica que a distinguia dentre as demais virgens de Israel. Aquilo representava um profundo pesar e desgraça. O mal estava selado; não havia como reverter sua miserável situação.

O crime de Amnon se assemelha ao dos irmãos de José. Estes, ao venderem-no como escravo para o Egito, estavam condenando-o a um tipo de morte, pois teria de viver no ostracismo, exilado de sua família, especialmente do pai que tanto o amava, de sua terra e de sua cultura. Seus irmãos não respeitaram o simbolismo da túnica especial feita por seu pai para distinguir José e ainda a usaram para enganá-lo a respeito de sua suposta morte.

Quanto a Tamar, além da vergonha terrível que teria de suportar perante a família e todo Israel, teve de viver uma vida de isolamento, recolhida na casa de seu irmão Absalão que, dois anos depois, viria se vingar ao assassinar Amnon. O autor de Samuel conta que, na casa de Absalão, Tamar passou a viver como uma mulher “desolada”. O crime sofrido por ela era uma condenação ao isolamento familiar, social e emocional. É quase certo que ela não se casou, não teve filhos e teve de suportar essa dor pelo resto da vida, o que também era um tipo de morte.

A palavra original usada para desolada em 2Sm 13:20 (shomemah) ocorre apenas seis vezes em toda a Tanach (Antigo Testamento). Além da referência a Tamar, ela aparece nos escritos dos profetas Jeremias, Ezequiel e Daniel para se referir à desolação da terra de Israel e do Templo durante o exílio babilônico. Comparando-se essas passagens, vê-se a gravidade e o grau de sofrimento que foi tal desolação. Essa palavra denota abandono e ruína, e assim viveu a pobre Tamar pelo resto de sua vida, desde jovem. Seus planos e sonhos foram simplesmente rasgados e arrancados dela, como a túnica real que usava, em um só momento por seu irmão primogênito, aquele quem deveria por ela zelar.

A TÚNICA SEM COSTURA

Na Brit Hadashah (Novo Testamento), encontramos outra referência a uma túnica, nesse caso, a de Jesus. Sabemos que Ele usava uma pelo relato dos Evangelhos sobre a crucificação, quando os soldados romanos repartem suas vestes, mas decidem não rasgar sua túnica, pois era tecida totalmente sem costura. O termo original em grego diz apenas túnica. No século I d.C, a tradição do uso de ketonet passim provavelmente não existia mais. Porém, sabemos que se tratava de uma túnica especial por não conter costura, o que atraiu a cobiça dos soldados que decidiram sortear quem ficaria com ela.

Embora não tenha como comprovar, sou inclinado a imaginar que Yeshua nunca comprara essa túnica, mas a recebera de presente. O fato de não possuir costura indica que não era uma túnica barata e vaidade pessoal era algo que passava longe do Senhor. Portanto, acredito que, em algum momento de seu ministério, alguém o tenha presenteado com ela. Teria sido um presente profético do próprio Pai para simbolizar o quão especial era seu Filho Único, a verdadeira Realeza e o autêntico Rei de Israel.

Essas túnicas especiais mencionadas nas Escrituras eram como uma marca de Deus, representavam a identidade e autoridade espiritual de quem a vestia. A de José mostrava que era o filho especial de Jacó, o patriarca das doze tribos de Israel e que se tornou vice-rei do Egito, a nação mais poderosa do mundo de sua época. A túnica de Tamar indicava que era uma princesa virgem, revestida de realeza e pureza, filha do rei de Israel. E a de Yeshua mostrava que era o Unigênito do Pai, destinado a ser não somente o Rei de Israel, mas o Rei das nações.  

O AMOR É MAIOR QUE O ÓDIO

Além da túnica especial que usavam e de seu significado, esses três personagens têm mais algo em comum. Eles perdem suas túnicas por causa do ódio de seus irmãos. Os irmãos de José conspiraram para matá-lo ao verem-no chegando sozinho em Dotã. Amnon, após estuprar Tamar, “sentiu grande aversão por ela”, mas a palavra para isso no original é “odiou-a”. E Yeshua foi morto por causa do ódio de seus irmãos. “Odiaram-me sem causa” (Jo. 15:25).

É triste constatar que o ciúme, a inveja e o ódio que destroem a vida de um filho amado, ou filha amada, são gerados pelos próprios irmãos. Isso é muito mais comum do que se imagina. Se não podem matá-lo fisicamente, fazem-no em seu interior, por meio de palavras e em sentimentos. Esse ódio fraternal remonta à criação do homem, começando por Caim que odiou seu irmão Abel simplesmente porque a oferta deste fora aceita e a sua não. Assim, não causa admiração saber que aqui, entre irmãos, ocorre o primeiro assassinato da História. Isso por si só deve ser motivo de cautela para todos os filhos e filhas que carregam em seu espírito uma túnica especial, revestidos de uma graça singular do Pai para um propósito específico. A advertência do profeta Miquéias parece cair como uma luva: os inimigos do homem são os da sua própria casa (Mq. 7:6).

Por outro lado, o antídoto contra tal ódio é o amor de Deus que opera por meio do perdão. Ainda que os irmãos tenham arrancado a capa de José, não puderam impedir que seu destino fosse cumprido. Mais de duas décadas haviam se passado e José, em vez de manter um coração rancoroso e vingativo, mostrou a eles que os havia perdoado incondicionalmente. Nada nos é dito sobre Tamar após sua vida desolada. No entanto, tenho uma convicção comigo que, em seu íntimo, ela tenha perdoado o crime de Amnon, a despeito do dano terrível que lhe causou. Isso porque ela era especial para usar aquela túnica e não devemos ignorar o amor e a misericórdia de Deus que habita com os humilhados e quebrantados. Quanto a Yeshua, Ele perdoou todos antes mesmo de expirar, de modo audível, quando crucificado.

Ainda que sua túnica tenha ficado com um dos soldados, nem os romanos nem os judeus puderam impedir que Ele cumprisse seu destino de salvar o mundo por seu sacrifício e de se tornar o Rei das nações. O mais fraco sente inveja, odeia e mata. O mais forte sofre o dano, perdoa e dá a vida; vide José, vide Jesus. No final, o amor sempre vence.


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