O Significado do Dia do Senhor

O Significado do Dia do Senhor

31 de Julho, 2022 0 Por Getúlio Cidade

Diante do interesse apresentado por nossos leitores pelo conteúdo do volume 2 de A Oliveira Natural, a ser publicado em breve, gostaria de abordar um tema que empreguei muito no livro, a fim de trazer luz sobre seu significado. O termo Dia do Senhor[1] é bem conhecido dos cristãos devido a seu emprego no Apocalipse de João. Entretanto, é um termo controverso, pois não há consenso sobre a que dia exatamente ele se refere; se é o sábado dos judeus ou o domingo dos cristãos. Novamente, precisamos nos voltar para a Oliveira Natural a fim de investigar o contexto judaico do século I, quando João o escreveu em suas revelações na ilha de Patmos. Assim, poderemos desvendar o real significado do Dia do Senhor.

João (Yochanan) inicia o livro de Apocalipse com uma saudação aos destinatários de sua mensagem: as sete comunidades messiânicas da província da Ásia Menor. Ele também se apresenta como seu “irmão e companheiro no sofrimento” decorrente de seguir a Palavra de Deus e de seu testemunho de Yeshua, explicando o motivo de ter sido exilado na ilha de Patmos. É lá que recebe a revelação que está prestes a descrever. E começa seu relato dizendo: “Eu fui arrebatado no Espírito no dia do Senhor”. Apocalipse 1:10

Essa breve declaração tem causado muita discordância e má compreensão nos estudiosos da Bíblia por séculos. Uns interpretam que o “dia do Senhor” referido por João é uma alusão direta ao Shabbat (sábado). Afinal, esse é um dia especial instituído por Deus dentro da semana. Se João fora arrebatado para ter suas experiências proféticas que redundaram em um livro tão importante para o cristianismo, faria todo o sentido que isso ocorresse nesse dia especial para os judeus do século I e discípulos de Yeshua.

O problema com essa interpretação é que em nenhuma literatura judaica, contemporânea ou não de João, esse termo é usado para se referir ao sábado. Sendo assim, João não criaria um termo referente ao Shabbat do nada, sem especificar isso. A fim de obtermos uma melhor compreensão das Escrituras, tanto do Velho quanto do Novo Testamentos, precisamos lidar com o contexto judaico da época, considerando fatores pertinentes como a linguagem usada, os símbolos, os códigos, os costumes etc.

Por exemplo, alguns séculos antes de Jesus até pouco depois da destruição do Templo, muitos escritos apocalípticos foram produzidos, especialmente pela comunidade dos essênios. Embora a grande maioria não conste no cânon sagrado, muitos guardam profunda semelhança com o Apocalipse de João. O livro de Enoque é um deles, talvez um dos mais relevantes em termos de semelhança com Apocalipse. Percebemos nesses escritos a mesma linguagem e os mesmos símbolos aludidos por João. Em nenhuma dessas literaturas, apocalípticas ou não, existe o termo Dia do Senhor como referência ao sábado. Portanto, essa é uma interpretação sem fundamento do real significado do termo.

A segunda interpretação e a mais tradicional é que o Dia do Senhor é uma referência ao dia da Ressurreição de Jesus, primeiro dia da semana judaica (primeiro do sábado como era conhecido) ou o domingo, conforme conhecido mundialmente. Essa interpretação sofre do mesmo problema da anterior, pois em nenhuma outra literatura da época há alguma menção ao primeiro dia da semana como sendo o Dia do Senhor.

Aliás, o primeiro dia da semana, consagrado ao deus-sol no Império Romano, ganhou esse nome ainda no século IV, quando Constantino, após sua conversão ao cristianismo, chamou-o de dia do Senhor (Dominus Dei) exatamente por causa da Ressurreição. No entanto, além de não constar em nenhuma menção prévia na literatura judaico-messiânica, João não parece preocupado em narrar em que dia da semana as revelações lhe foram dadas. Se estivesse preocupado em registrar quando isso ocorreu, faria mais sentido ele escrever a data exata, como era normal entre os cronistas antigos de Israel, e não mencionaria apenas o dia da semana. Portanto, alegar que o Dia do Senhor é o domingo não passa de outra afirmação vazia de fundamentos.

A IMPORTÂNCIA DA BÍBLIA HEBRAICA

Normalmente, a maioria dos termos diferentes ou que julgamos terem sido criados no Novo Testamento são retirados da Bíblia hebraica. Termos empregados por Yeshua nos Evangelhos raramente eram desconhecidos de sua audiência, mas de amplo conhecimento como, por exemplo, Malchut HaShamaim ou Reino dos Céus, até hoje empregado no judaísmo. Os termos “Grande Tribulação” ou “dores de parto” também não foram criados por Yeshua, mas são simplesmente menção aos livros dos Profetas como Isaías, Jeremias e Daniel.

Yeshua teria tido dificuldades em se comunicar com seu público se criasse termos do nada e não explicasse o que era. Não devemos confundir isso com o uso de parábolas, histórias que faziam uso de uma linguagem cifrada com o propósito de ensinar alguma lição. As parábolas também não eram uma invenção de Yeshua, mas uma prática comum de todos os rabinos; repito, todos os rabinos. Há milhares de parábolas na literatura rabínica e muitas delas se assemelham às contadas por Yeshua, sendo anteriores a Ele, o que mostra não somente que Ele as conhecia, mas também que lhe inspiraram a criar as suas próprias. No capítulo 4 do volume 1 do livro A Oliveira Natural, exploramos com profundidade essas práticas judaicas de Yeshua bem como seus ensinamentos como rabino.

Outro exemplo sobre imagens e símbolos dentro do contexto judaico em que foi escrito o Novo Testamento está na “armadura de Deus”, mencionada por Paulo (Shaul) em 1Tessalonicences 5:8 e Efésios 6:10-18, expressão tão conhecida entre os cristãos. Se alguém entrar em uma loja evangélica com artigos infantis que tenha a “armadura de Deus” para crianças, encontrará uma réplica de brinquedo da armadura romana do século I. E se perguntar a qualquer cristão a respeito dessa armadura mencionada por Paulo, ele dirá que se trata da mesma armadura romana.

No entanto, assim como Yeshua, Paulo não sacava essas imagens do nada, mas da Bíblia hebraica. A couraça da justiça e o capacete da salvação são uma menção direta de Isaías 59:17, onde o profeta se refere à armadura judaica do século VIII antes de Cristo, época em que escreveu sobre isso. Essa é a armadura vestida por Deus, segundo Isaías, e a mesma usada por Paulo para nos inspirar espiritualmente a vesti-la. Nada tem a ver com a armadura romana criada séculos depois. Outro termo empregado por Paulo muito conhecido diz respeito à Noiva de Cristo. O termo noiva também não foi criado por ele, mas é uma referência ao livro de Cântico dos Cânticos, em que a Noiva é Israel e o Noivo, o Messias – um conceito que existe no judaísmo há pelo menos cerca de mil anos antes de Cristo, quando Salomão escreveu o livro.  

Os exemplos citados acima são apenas alguns e mostram como os autores do Novo Testamento recorriam à Bíblia hebraica para elaborar seus escritos. Afinal, eram judeus que viviam a cultura da Torá e dos Profetas, dentro do contexto histórico e sociorreligioso de suas origens. Isso por si só mostra a importância de se conhecer o que chamamos de Velho Testamento, tão ignorado por muitos atualmente. É impossível compreender e interpretar o Novo Testamento sem conhecer toda a Torá, os livros históricos e os profetas.

YOM ADONAI

Olhando para o mesmo contexto judaico no qual Yochanan estava inserido, assim como as demais comunidades messiânicas a quem dirige sua mensagem apocalíptica, o termo Dia do Senhor ganha sentido quando se olha para os livros dos profetas de Israel que estão repletos do mesmo termo. O Dia do Senhor é Yom Adonai, mencionado inúmeras vezes nos profetas e mesmo por outros apóstolos como Pedro e Paulo no Novo Testamento. Muita controvérsia e disputa de interpretações teológicas poderiam ser evitadas se tão somente pesquisássemos as Escrituras com maior diligência. Deixemos que a Bíblia interprete a si mesma.

O Dia do Senhor (Yom Adonai) é uma referência aos dias do fim, um tempo de juízos e castigos divinos sobre a Terra, mencionado repetidamente nos livros proféticos da Bíblia hebraica (Velho Testamento). Dentre muitas passagens, encontramos esse tema em: Isaías 2:12-21 e 13:6-9; Ezequiel 13:5 e 30:3; Joel 1:15, 2:1-11 e 3:14; Amós 5:18-20; Obadias 1:15; Sofonias 1:7-18; Zacarias 14:1; Malaquias 4:5-6; etc. Todas essas passagens abordam o Dia do Senhor como sendo um tempo difícil para os homens, de catástrofes e caos, um tempo de castigo sobre a Terra para julgar a rebeldia do homem contra Deus e sua insistência deliberada no pecado. Vejamos, por exemplo, o que diz Isaías sobre Yom Adonai:

“O dia do Senhor dos Exércitos será contra todo soberbo e altivo, e contra todo o que se exalta, para que seja abatido (…). A arrogância do homem será humilhada e o orgulho dos homens será abatido; só o Senhor será exaltado naquele dia (…). Os homens se meterão nas cavernas das rochas, e nas covas da terra, por causa da presença espantosa do Senhor e por causa do esplendor da sua majestade, quando ele se levantar para sacudir a terra. (…) e meter-se-ão pelas fendas das rochas, e pelas cavernas das penhas, por causa da presença espantosa do Senhor, e por causa do esplendor da sua majestade, quando ele se levantar para sacudir a terra” (Isaías 2:12,17,19,21).

Essa atmosfera descrita pelo profeta se alinha perfeitamente com o que viu João em Apocalipse: “E os reis da terra, e os grandes, e os ricos, e os tribunos, e os poderosos, e todo o servo, e todo o livre, se esconderam nas cavernas e nas rochas das montanhas. E diziam aos montes e aos rochedos: Caí sobre nós, e escondei-nos do rosto daquele que está assentado sobre o trono, e da ira do Cordeiro. Porque é vindo o grande dia da sua ira; e quem poderá subsistir?”. Apocalipse 6:15-17

Quando examinamos o significado do Dia do Senhor nas Escrituras do Velho Testamento, a compreensão do que João relata em Apocalipse é imediata. Não precisamos acrescentar interpretações. João não estava preocupado em mencionar o dia em que foi arrebatado, mas em relatar que foi arrebatado em Yom Adonai, o tempo do acerto de contas de Deus no fim dos dias, e viu os juízos terríveis sobre a Terra de que escreveram os profetas de Israel séculos antes dele. É disso que trata o livro de Apocalipse e é esse o real significado do Dia do Senhor. As comunidades messiânicas da Ásia Menor não tiveram nenhuma dificuldade em compreender isso quando leram sua profecia, pois estavam inseridas dentro do contexto judaico de sua época.  


[1] O Dia do Senhor está entre os muitos assuntos escatológicos no contexto das Festas do Outono, referentes à segunda vinda de Yeshua e tratados no volume 2 do livro A Oliveira Natural, com publicação prevista para o segundo semestre de 2022. Em breve, divulgaremos aqui no blog maiores detalhes para os interessados em adquirir o livro.

Leia também:

Como o Ladrão de Noite

Os Anjos de Deus Segundo a Bíblia

A Lua de Sangue e as Festas do Senhor

Explore com profundidade as Festas do Senhor e conheça mais sobre nossas raízes. Leia o livro A Oliveira Natural: As Raízes Judaicas do Cristianismo.