A Disciplina de Deus

A Disciplina de Deus

30 de Agosto, 2023 0 Por Getúlio Cidade

Disciplina é uma palavra de abrangência ampla em sua definição secular. Dentre seus vários sentidos, pode se referir ao respeito às normas e regulamentos; à boa conduta de uma pessoa, em especial no trabalho; ou a um modo de agir que preze pelo método a fim de se alcançar um resultado eficaz. Em sua definição bíblica, a disciplina ganha um contexto familiar e, quando aplicada corretamente, tem o mesmo significado de correção. Neste artigo, é a esse tipo de disciplina que quero me referir. É a disciplina de Deus, cuja definição é bem conhecida, porém, pouco compreendida.

Uma das abordagens mais conhecidas sobre a disciplina foi escrita pelo rei Salomão: “Meu filho, não rejeite a disciplina do Senhor, nem se aborreça com a sua repreensão. Porque o Senhor repreende a quem ama, assim como um pai repreende o filho a quem quer bem” (Provérbios 3:11-12). A palavra para disciplina é מוסר (musar) que significa também instrução, correção e castigo. É uma palavra ainda usada no hebraico moderno que significa ética, moral, princípios, mas também pode significar castigo, mantendo o significado original das Escrituras. Logo, pode-se dizer que uma pessoa de boa moral e princípios é aquela que foi corrigida ou disciplinada.

UMA PROVA DE AMOR

O autor da carta aos Hebreus cita essa mesma passagem de Provérbios para ensinar sobre a disciplina de Deus. Ele é mais categórico ao dizer que, se somos filhos, seremos disciplinados, “pois que filho há a quem o pai não corrige?” (Hb. 12:7). É nesse contexto de convívio doméstico que o autor nos apresenta a disciplina divina. Ela é um bom sinal, pois indica que somos filhos legítimos (os ilegítimos ficam sem disciplina). Se fomos capazes de suportar a disciplina de nossos pais biológicos, aos quais respeitamos, deveríamos nos sujeitar muito mais ao nosso Pai celestial que nos disciplina para o bem. A disciplina de Deus visa a nos tornar participantes de sua santidade (v.8-10).

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Por fim, o autor resume bem o sentimento de quem é disciplinado e seu resultado: “Na verdade, toda disciplina, ao ser aplicada, não parece ser motivo de alegria, mas de tristeza. Porém, mais tarde, produz fruto pacífico aos que têm sido por ela exercitados, fruto de justiça” (Hb. 12:11). E é exatamente assim que funciona a disciplina de Deus; como aquele remédio em xarope de cheiro nauseante e gosto amargo que somos forçados a ingerir para combater alguma moléstia em nosso corpo. É preciso tomá-lo para, em seguida, obtermos a cura.

Essa comparação da disciplina de Deus com a de um pai que não deixa de corrigir seu filho a quem ama é providencial e oportuna, uma vez que vivemos em um tempo em que a disciplina no lar parece arcaica e ultrapassada. O livro de Provérbios fala dessa disciplina infantil que deve ser imposta pelos pais a fim de livrar a criança da morte, como no capítulo 23:13, em que se ordena o uso da “vara”. Acredito que muitos que estão lendo isso, como eu, foram disciplinados fisicamente por seus pais quando crianças para serem corrigidos de seus erros. Como diz o livro de Provérbios, escrito pelo homem dotado da mais alta sabedoria, nem por isso morremos. Ao contrário, a disciplina da “vara” nos corrigiu do caminho tortuoso e nos guiou pelo caminho da retidão. É muito fácil constatar essa verdade bíblica. Compare um adulto que foi corrigido pelos pais desde cedo com um que nunca recebeu nenhum tipo de disciplina e verá a diferença.

A propósito, a palavra usada em Provérbios para “vara” é a mesma para “cetro” nas Escrituras, o que nos leva a pensar que o instrumento que representa o domínio de Deus sobre o universo e toda a criação é o mesmo usado para disciplinar seus filhos. Isso me faz ir mais longe e refletir na promessa de Apocalipse 5:10 em que o Cordeiro de Deus nos comprou para si a fim de nos tornar reis e sacerdotes para reinar sobre a Terra. A disciplina de Deus possui, em última instância, o propósito de nos tornar reis. A vara que nos corrige hoje nos prepara para recebermos um cetro em seu Reino futuro. Por isso, o Filho do Homem é chamado de Rei dos reis. Nós que constituímos o corpo do Messias somos esses reis.

Em seu último ensinamento aos discípulos, Yeshua disse que todo ramo que produz fruto é podado pelo Pai para que produza mais fruto ainda (João 15:2). A poda é um processo doloroso e, muitas vezes traumático. Por vezes, Deus cortará aquilo que estimamos ou que achávamos bom ou bonito. Algumas vezes, Ele fará com que pareça que tenhamos voltado ao início, como em um jogo de tabuleiro, para recomeçar. Isso é sua disciplina em ação, a sua correção em andamento. Poderemos não compreender exatamente o porquê, porém, o fim será sempre o de produzir mais fruto para Deus. Ao exortar à Igreja de Laodiceia, o Senhor diz: “Eu repreendo e castigo a todos quantos amo. Portanto, sê zeloso e arrepende-te” (Ap. 3:19). A disciplina é uma prova de amor de Deus para com seus filhos.

A FERIDA E A CURA

O livro de Deuteronômio contém um retrospecto de toda a trajetória de Israel durante os quarenta anos no deserto. É uma coletânea das palavras de Moisés, ditas em um intervalo de pouco mais de um mês, para o povo acampado a leste do Jordão, antes de entrar na Terra Prometida. Em uma recapitulação carregada de exortações, memórias do que o povo passara naquela longa travessia e emoção que pode ser sentida em suas palavras, antes de subir o monte Nebo para morrer, ele diz: “Sabe, pois, no teu coração, que, como um homem disciplina a seu filho, assim te disciplina o Senhor, teu Deus” (Dt. 8:5).

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Não há como ler o capítulo 8 desse magnífico livro sem sentir a emoção do legislador de Israel em seu último discurso, depois de ser provado ao extremo e ter experimentado em todas as circunstâncias a fidelidade do Senhor. Podemos aprender muito sobre a disciplina de Deus nesse breve resumo. Foi Ele mesmo quem afligiu Israel no deserto repleto de serpentes e escorpiões e fez com que sentissem fome para sustentá-los com o maná. Sofreram com o frio da noite e com o calor do dia, mas havia a contínua proteção sobrenatural da coluna de fogo, à noite, e da nuvem durante o dia. Sentiram sede, mas um manancial de água os seguia por onde quer que passassem. Não tinha onde comprar nem fabricar roupas, mas suas vestes nunca envelheceram nem seus calçados apodreceram naqueles quarenta anos. Enfim, Israel experimentou todo tipo de privação e provação, mas, em todo o tempo, foi guiado pelo Senhor que o humilhou e o provou para, no fim, lhe fazer o bem (v.16).  

Esse é o propósito da disciplina de Deus, de nos tornar semelhantes a Ele, participantes de sua santidade, conforme o autor de Hebreus, e conhecedor de sua fidelidade e amor, por mais paradoxo que possa parecer. Ela visa, no fim, nos fazer o bem, como resumiu Moisés. Toda pessoa experimentada no sofrimento é uma pessoa melhor em todos os aspectos aos olhos do Senhor e não teme a disciplina de Deus, pois sabe que nela está o caminho da vida.

É exatamente essa ideia que o profeta Oséias transmite quando exorta Israel a fazer Teshuvá, em uma de minhas passagens prediletas dos Profetas: “Vinde e tornemos para o Senhor. Ele nos despedaçou, mas nos sarará; fez a ferida, mas a ligará” (Os. 6:1). Se fomos quebrados pelo Senhor em alguma disciplina, Ele é poderoso para nos reconstituir, seja no corpo, seja na alma. Se nos feriu de algum modo, Ele é poderoso para fechar e curar qualquer ferimento. Nenhuma dor, nenhuma ferida gerada por uma correção do Pai é desperdiçada, mas coopera para o nosso bem. Não desprezemos a disciplina de Deus.

AS MARCAS DE JESUS

Há muitos anos, li uma história que muito me marcou e me leva a refletir ainda hoje. Em um belo dia ensolarado, um menino do interior, cuja casa era próxima a um rio, saiu para se banhar em suas águas. Vigiado nas proximidades por sua mãe, ele começou a brincar nas águas turvas, quando o imprevisível aconteceu. Um grande jacaré, atraído pelo barulho, emergiu com a cabeça de fora nadando rapidamente em sua direção. A mãe, ao ver essa cena horripilante, gritou de pânico para o menino, mandando-o sair da água. Ele obedeceu, confuso e sem entender o que ocorria, mas era tarde. O jacaré o abocanhou pelos pés, bem na margem do rio, derrubando-o e tentando arrastá-lo para dentro d’água.

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A essa altura, a mãe alcançara seu filho e o agarrara com todas as forças pelos braços. Começou, então, um angustiante cabo de guerra entre o enorme jacaré e a mãe do menino. O animal com a mandíbula cerrada sobre os pés e pernas da criança puxava-a para dentro da água, enquanto sua mãe, em desespero, puxava-a para fora do rio. O grande jacaré era páreo duro para a mulher, mas aquela mãe não deixaria escapar de suas mãos o filho que tanto amava, ainda que ele ficasse sem os pés. No meio dessa disputa horrenda, o jacaré, apesar de seu tamanho, percebeu que não conseguiria nada e soltou o garoto. Da mesma forma que surgira, o animal desapareceu rapidamente dentro das águas turvas do rio. O menino estava salvo, mas precisou ser hospitalizado.

A despeito dos ferimentos profundos nos pés e nas pernas, não precisou amputar nada e teve seus movimentos preservados. Durante seu período de recuperação, um canal de TV local entrevistou o menino e a jornalista quis mostrar as marcas do ataque do jacaré em seu corpo. Enquanto ela ressaltava a gravidade do ataque que poderia ter ceifado a vida do menino, ele a interrompeu e mostrou seus braços com os ferimentos causados por sua mãe. Eles estavam profundamente marcados pelas unhas, quando as cravara em seus braços para resgatá-lo do jacaré faminto. Ele mostrou orgulhosamente essas feridas e disse à jornalista: “Olha essas aqui! Foram as unhas da minha mãe! Ela que me salvou de ser comido pelo jacaré!”.

Muitos de nós nos assemelhamos à história desse menino. Trazemos em nossas almas (ou mesmo em nosso corpo) cicatrizes de feridas causadas por tragédias, traumas e perdas. Muitas delas, no entanto, são marcas feitas pelo próprio Deus que, como aquela mãe zelosa e vigilante, não deixaria seu filho ter sido devorado por um monstro, seja ele qual for. São marcas profundas de sua disciplina para nos corrigir, ensinar e, sobretudo, livrar-nos de sermos destruídos por nosso inimigo. Paulo, acostumado a essa disciplina do alto e ao sofrimento inerente ao Reino de Deus, compreendia isso como ninguém. Por isso se referiu às cicatrizes dos açoites em seu corpo como sendo “as marcas de Jesus” (Gl. 6:17). Seja no corpo ou na alma, todo filho querido carrega consigo essas cicatrizes de um Pai amoroso que jamais nos abandona.


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