A Milenar Bênção do Pão

A Milenar Bênção do Pão

5 de Julho, 2021 7 Por Getúlio Cidade

Comer em família e com amigos é um ato inerente a todas as sociedades. Na verdade, comer junto é algo que transcende eras, épocas e barreiras culturais, e faz parte da vida do homem desde o nascimento. É um costume instituído por Deus. Não é à toa que as Bodas do Cordeiro serão celebradas com um grande banquete no Reino dos Céus (Mateus 8:11). Comer pão apenas ou acompanhado de qualquer alimento à mesa é algo tão significativo dentro do judaísmo que há uma bênção específica a ser recitada para essa ocasião. É a milenar bênção do pão, ainda pouco conhecida dentro do cristianismo.

A bênção do pão ou Hamotzi trata-se de uma bênção milenar, usada também por Yeshua que era rabino, e se encontra em diversas passagens dos Evangelhos. É dada antes de se comer o pão em separado ou junto com outra refeição em geral, em especial, na refeição cerimoniosa do Shabbat. Aqui, aparece um problema de tradução que normalmente desconsidera os hebraísmos ocorridos na língua de partida. A maioria das versões diz que Yeshua abençoou o pão ou o alimento antes de comê-lo. Na verdade, Ele recitou a milenar bênção do pão que diz: “Bendito és Tu, Senhor nosso Deus, Rei do universo, que faz o pão brotar da terra”. (Para ouvir esta bênção em hebraico, visite nosso Instagram).

É uma bênção singela, mas expressa profunda gratidão a Deus que nos provê o alimento e faz com que este chegue à nossa mesa. Entretanto, o pão não brota diretamente da terra, exceto o trigo, matéria primordial para se confeccioná-lo. Cabe aqui ressaltar algo bem interessante sobre essa questão dito pela tradição. Há diversos comentários rabínicos sobre o Jardim do Éden no tocante às árvores de cujos frutos Adão e Eva podiam comer. De todas, apenas uma foi proibida por Deus: a do conhecimento do bem e do mal (Gênesis 2:18). As demais estavam disponibilizadas para seu usufruto e os rabinos que escreveram seus comentários no início da Era Cristã divagaram sobre isso.

Certamente, os frutos dessas árvores excediam em muito em criatividade e sabor aos que existem hoje na natureza. Assim, uma das especulações é de que o Éden era tão perfeito que havia árvores de pão. Essa conclusão é tirada de quando o homem é expulso do Jardim e Deus lhe diz que, a partir de então, do suor de seu rosto ele comerá seu pão (primeira vez que aparece esse termo na Torá). Então, conclui-se que, antes da expulsão do Éden, o homem não somente comia pão, mas também não precisava trabalhar por ele, podendo achá-lo inclusive assado nas árvores, pronto para consumo. Portanto, a milenar bênção do pão teria se originado desse entendimento, remetendo ao Jardim do Éden, quando o pão brotava diretamente da terra.

A MULTIPLICAÇÃO MILAGROSA

Em vários episódios nos Evangelhos, Jesus utiliza essa bênção e quero discorrer sobre um dos mais famosos de todos em que ela é recitada por Ele: a primeira milagrosa multiplicação dos pães. A história se encontra em Marcos 6:30-44 e envolve uma das mais grandiosas manifestações milagrosas do Messias em seu ministério terreno.

Tudo começou quando Jesus quis levar os discípulos para um lugar deserto, onde teriam oportunidade de passar mais tempo a sós com ele, pois o movimento de tantas pessoas em busca do Senhor os impedia até mesmo de comer (v.31). É interessante frisar isso porque o comer juntos sempre foi um forte na cultura judaica, o que está previsto inclusive nas Festas do Senhor. E Jesus, como rabino que era, aproveitava o máximo dessas oportunidades para ensinar os discípulos a respeito das verdades do Reino de Deus. Ele sabia que os discípulos precisavam desse tempo de descanso e comunhão, e decide levá-los para um local deserto.

No entanto, a multidão estragou seu plano, pois Ele não contava que milhares de pessoas iriam atrás de si. Esse também é um fato relevante, pois, por muitas vezes, nossos planos são frustrados por Deus com algum propósito maior e nem sempre reagimos bem a isso. Gosto desses acontecimentos na vida de Yeshua, pois nos mostram seu lado humano e que não tinha o domínio sobre tudo o que ocorria a sua volta, porém, confiava que o Pai o guiava cuidadosamente passo a passo. Em vez de se frustrar, ao ver milhares que esperavam seu barco chegar na margem, Ele “teve compaixão deles, porque eram como ovelhas que não têm pastor; e começou a ensinar-lhes muitas coisas” Marcos 6:34.

Ao entardecer, os discípulos pedem a Yeshua para liberar o povo para que possa ir às cidades comprar alimento. E é nesse momento que se inicia o milagre, pois Ele já sabia o que iria fazer (João 6:6). Antes, porém, Yeshua ordenou que toda a multidão se assentasse primeiramente, de modo organizado, em grupos de cinquenta e de cem pessoas. Não foi uma tarefa fácil porque havia cinco mil homens, sem levar em conta mulheres e crianças que eram muitas certamente. Isso levou um bom tempo, mas tal arranjo organizado era necessário e, em minha interpretação, Yeshua fez isso por dois motivos.

O primeiro e mais óbvio é que, sem tal arranjo, com todos assentados recebendo ordenadamente o alimento das mãos dos discípulos, provavelmente haveria uma tragédia. A multidão com fome pela hora avançada, ao ver os cestos repletos de pão e peixe, não hesitaria em correr para garantir sua porção. Alguns cairiam e seriam pisoteados pela massa faminta no afã de conseguir alimento, o que redundaria provavelmente em muitos mortos e feridos. O milagre da multiplicação conforme é conhecido hoje não seria tão prodigioso assim. Seria conhecido também como o grande massacre da multiplicação dos pães e isso logicamente não glorificaria a Deus. Vemos aqui não somente o poder de operação de milagres operando sobre o Filho de Deus, mas também o “espírito de sabedoria e de entendimento”, conforme profetizado em Isaías 11:2.

Entretanto, acredito também que houve outra motivação em Yeshua para Ele agir dessa forma, menos superficial e menos aparente do que a primeira. Era o desejo de que os milhares presentes naquele banquete a céu aberto gozassem da companhia uns dos outros, em pequenos grupos. Aquela certamente foi a primeira reunião em grupos caseiros, ou células, ou pequenas congregações, ou qualquer outro nome que se queira dar, ocorrida no Novo Testamento.

Esse extraordinário milagre foi precedido por Hamotzi ou a milenar bênção do pão. “E, tomando ele os cinco pães e os dois peixes, levantou os olhos ao céu, abençoou e partiu os pães, e deu-os aos seus discípulos para que os pusessem diante deles. E repartiu os dois peixes por todos” Marcos 6:41. Uma tradução mais fiel às raízes judaicas seria dizer que Yeshua levantou os olhos ao céu, recitou Hamotzi e partiu os pães, dando-os aos discípulos. Ao dizer estas simples palavras de gratidão: “Bendito és Tu, Senhor nosso Deus, Rei do universo, que faz o pão brotar da terra”, Ele disparou o gatilho do milagre da multiplicação dos cinco pães e dois peixes.

Ao reparti-los e entregá-los aos discípulos que, por sua vez, repassavam em cestos aos muitos grupos de cinquenta e de cem pessoas assentados, o pão ia se multiplicando à medida que pedaços eram retirados dos cestos. Essa é a imagem que tenho da multiplicação. Quanto mais se tirava, mais os pães se multiplicavam dentro dos cestos. Sempre cri que foi assim, embora não possa comprová-lo. Mas sou levado a crer porque é exatamente assim que funciona a matemática de Deus, totalmente oposta à do homem. Quanto mais damos, mais recebemos e temos mais ainda para dar, e o ciclo se repete ininterruptamente até que haja uma abundância tal que não se pode explicar, a não ser pelo sobrenatural. Esse é o caráter inerente a Deus que é um Pai que dá tudo a todos. Foi assim que, no final, ainda sobraram doze cestos cheios de pedaço de pão e peixe!

Esse gesto de Yeshua é repetido em cada lar judeu, quando se come pão em família, em especial na refeição de Shabbat, quando se recita a mesma bênção, as mesmas palavras, partindo-se o pão por aquele que a pronuncia e distribuindo-se aos presentes de mão em mão. Foi assim que, naquele local da Galileia, os pães chegaram a todos os presentes, de mão em mão, a partir de Yeshua e dos discípulos. “E todos comeram, e ficaram fartos” Marcos 6:42. Foi um tempo de comunhão excepcional. O que Yeshua planejava apenas para os discípulos, o Pai o direcionou para fazer com toda uma multidão de milhares de pessoas. E fez essa história fantástica ser registrada nos Evangelhos e percorrer os quatro cantos do mundo, através dos séculos, para glorificar seu nome.  

Após receberem muitos ensinamentos do próprio Messias (v.34), elas se assentaram confortavelmente sobre a relva, em pequenos grupos, fartando-se de pão e peixe concedidos pela provisão divina, estarrecidos pelo milagre diante de seus olhos, mas alegres pelo privilégio de testemunharem e participarem desse momento histórico e glorioso. Imagino o quanto não glorificaram a Deus e exultaram ao verem os pedaços de pão e peixe sendo retirados dos cestos dos discípulos, cada vez em maior número, passando de mão em mão para comerem com toda liberdade e fartura. Ninguém teve falta naquele dia; todos se fartaram.

Provavelmente, os presentes mais atentos àquele momento profético para Israel se lembraram das palavras das promessas do Salmo 132, um dos cânticos dos degraus cantados nas Festas do Senhor: “fartarei de pão os seus necessitados” Salmos 132:15. Assim como do Salmo 146, escrito por Davi, pois diante deles estava o Filho de Davi, “o que faz justiça aos oprimidos, o que dá pão aos famintos […]” Salmos 146:7. Muitos, ao verem cumpridas essas Escrituras diante de seus olhos e comerem do pão milagroso, certamente misturaram lágrimas aos risos de júbilo e brados de louvor.

Após realizar esse milagre, o próprio Yeshua se denominou o Pão que desceu do céu e acrescentou: Anochi lechem HaChaim! – “Eu sou o pão da vida” João 6:48. Ele alimentou a multidão de si mesmo ao lhe dar de graça as palavras da vida eterna. Em seguida, recitou a milenar bênção do pão e partiu os cinco pães e dois peixes, passando-os de mão em mão até todos se fartarem. O Pão da Vida é capaz de alimentar a alma faminta dos homens. Ainda que não haja provisão suficiente, Ele sozinho é suficiente e pode fartar a alma cansada. Ele é “o pão que desce do céu, para que o que dele comer não morra” João 6:50 e também supre os corpos fatigados e famintos do pão que Ele mesmo faz brotar da terra.  


Leia a parte 2 desse artigo em:

Reconhecendo Yeshua no Partir do Pão

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O Segredo de Deus

Jesus e a Língua Hebraica – Parte 2