Rosh HaShanah e o Toque do Shofar

Rosh HaShanah e o Toque do Shofar

12 de Setembro, 2023 0 Por Getúlio Cidade

Mais uma vez, aproximamo-nos de Rosh HaShanah, marcando o início do novo ano judaico de 5784 que se dará ao pôr do sol do dia 15 de setembro de 2023. Rosh HaShanah abre as Festas do Outono, aquelas que apontam para a segunda vinda do Messias, ligadas a eventos futuros que culminarão com seu Reino milenar sobre a Terra. Todas estão interligadas e ocorrem no mesmo mês de Tishrei, o primeiro do calendário judaico civil. Sua celebração ocupa os dois primeiros dias do mês. O nome Rosh HaShanah não se encontra na Torá, pois apareceu muito tempo depois na tradição. Na Bíblia, é conhecido como a Festa das Trombetas ou Yom T’ruah — a Festa do toque do shofar. Rosh HaShanah e o toque do shofar estão intimamente relacionados.

Os leitores de nossos livros e os que nos acompanham aqui no site sabem que busco trazer um novo tema pertinente a cada celebração das Festas do Senhor. Nesse Rosh HaShanah, gostaria de abordar sobre o shofar e seu significado para a Festa. No volume 2 de A Oliveira Natural, apresentamos um estudo extenso sobre a Festa das Trombetas. Ela aponta também para o dia do juízo, o dia escondido, para a ressurreição dos mortos, para a cerimônia de coroação do Messias e para o Casamento do Messias, dentre algumas interpretações no judaísmo messiânico. Neste artigo, vamos falar apenas sobre a ligação entre Rosh HaShanah e o toque do shofar, ressaltando seu simbolismo.

A Torá ordena a Festa das Trombetas e atribui papel relevante ao toque do shofar em sua observação. “O Senhor disse a Moisés: ‘Dê as seguintes instruções ao povo de Israel. No primeiro dia do sétimo mês, tenham um dia de descanso absoluto. Será uma reunião sagrada, uma celebração memorial comemorada com toques de trombeta (shofar). Não façam nenhum trabalho habitual nesse dia, mas apresentem ofertas especiais para o Senhor’” (Levítico 23:23-25). Como todos os dias solenes das Festas do Senhor, o das Trombetas deve ser um dia de descanso como o Shabbat e com um memorial através do toque do shofar para celebrá-la.

A tradução de Yom T’ruah por Festa das Trombetas não traduz a exatidão de seu significado original. A palavra t’ruah (תרועה) equivale a uma explosão, um forte barulho ou um sonido de alarme alto, normalmente ligado ao sentimento de euforia e regozijo. Em outras passagens, sua tradução se aproxima mais de seu sentido original, como em Josué 6:20, quando o povo, ao ouvir o som dos shofarot, “gritou com grande brado” (t’ruah g’dolah — (תרועה גדולה e o muro de Jericó caiu. A imagem do povo cercando as muralhas da cidade ao som dos shofarot e dando berros de euforia equivale a uma explosão de barulho formado por instrumentos musicais e vozes humanas em louvor a Deus. Isso é t’ruah! Logo, Yom T’ruah, em uma tradução mais fidedigna seria “dia da explosão do shofar”.

Durante todo o mês de Elul, nos dias que precedem Rosh HaShanah, o shofar é tocado bem cedo a cada manhã de Teshuvah, fazendo um chamado ao arrependimento. Elul é um mês crítico e de introspecção, cujo propósito é levar a pessoa a analisar suas ações e palavras diante de Deus e dos homens, arrependendo-se de seus maus caminhos e endireitando sua vereda. A mensagem é: arrependa-se antes que chegue o dia do juízo (Rosh HaShanah). O toque do shofar visa trazer essa mensagem aos ouvidos atentos à voz de Deus. O salmo 27, conhecido como o salmo de Teshuvah, é lido a cada manhã de Elul, após as orações e, não por acaso, é o único salmo que contém a palavra t’ruah, no verso 6, traduzida por “sacrifício de júbilo” na maioria das versões em português. A Nova Versão Transformadora (NVT) chama de “sacrifícios com gritos de alegria”. Esta é uma tradução fiel para t’ruah.

O SIMBOLISMO DO SHOFAR

Rosh HaShanah é um dia para se ouvir o toque do shofar, conforme preceitua a Torá (Lv. 23:24 e Nm. 29:1). Há quatro tipos de toque para o shofar: tekiah, shevarim, t’ruah e tekia hagadol. Tekiah é o mais conhecido, tocado em duas notas, uma grave e outra aguda mais longa. Shevarim equivale a três toques de tekiah seguidos e mais rápidos. T’ruah é composto de um tekiah seguido de nove notas iguais em staccato. E tekiah hagadol é o tekiah prolongado, o último, mais solene e mais longo de todos. Esses sons são executados em sequência após a recitação das bênçãos. Há vários elementos simbólicos no toque do shofar em Rosh HaShanah e abordarei alguns deles.

O toque do shofar em Rosh HaShanah

A Festa das Trombetas marca não apenas o início do ano civil, mas a criação do homem, conforme diz a tradição. Rosh HaShanah marca esse dia em que Deus soprou nas narinas de Adão o fôlego da vida e este se tornou alma vivente. Logo, no próximo 1º de Tishrei, celebraremos o ano 5784 da criação do homem. Essa contagem, porém, adotada na Idade Média, não é precisa, sendo apenas uma referência, como é de amplo conhecimento no judaísmo.

O costume de se tocar o shofar em todas as manhãs de Elul não é um preceito da Torá, mas uma preparação para o grande dia de Rosh HaShanah, tendo em vista a importância desse dia e do mesmo estar diretamente ligado ao Dia do Juízo. Por isso, é uma chamada precursora ao arrependimento. Como escreveu Maimônides, mais conhecido Rambam, o grande rabino do século XII, o shofar é como uma voz que clama a todos os que dormem: “Despertem, oh sonolentos, de seus sonos! Vocês que dormem, levantem-se! Examinem seus atos, arrependam-se e lembrem-se do Criador!”.[1] Além disso, o shofar marca o primeiro dos Asseret Yemei Teshuvah (Dez Dias de Arrependimento), também conhecidos como Dias de Temor ou de Reverência que se estendem entre Rosha HaShanah e Yom Kippur. Até Yom Kippur, haverá chance para quem se arrepender. Neste dia, o livro da vida é selado, assim como o destino dos homens, restando apenas o julgamento.

Outro significado na tradição rabínica para o toque do shofar em Rosh HaShanah é nos lembrar do alerta dos profetas que é comparado ao shofar, conforme Ezequiel 33:4-5. Aquele que ouve seu toque e atenta para ele, salvará sua vida. Aquele que o ouve e o ignora, seu sangue recairá sobre si. Esse mesmo toque do shofar inspira em nós uma sensação de tremor e temor, o que nos leva a buscar uma maior proximidade de Deus com humilhação e confissão. Assim declara o profeta: “Será ouvido o som do shofar na cidade sem que o povo estremeça?” (Amós 3:6). É um alerta para o juízo iminente de Deus que será executado em Rosh HaShanah, quando toda a humanidade será julgada, conforme declara o versículo: “O grande dia do Senhor está perto […] dia do soar do shofar e de alarido (t’ruah)” (Sofonias 1:14-16).

O shofar anuncia a chegada de um rei, como no salmo 98:6, e o próprio Jesus afirmou que surgirá no céu com um forte toque de shofar (Mt. 24:30-31). O shofar também é um lembrete da ressurreição dos mortos, conforme a interpretação judaica de Isaías 18:3, em que todos os moradores da Terra ouvirão seu som. E conforme ensinou o apóstolo Paulo em 1Coríntios 15:52, quando o shofar soará e os mortos ressuscitarão incorruptíveis; e 1Tessalonicenses 4:16, em que o Senhor, tocado o shofar, descerá dos céus e os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro.

UMA HISTÓRIA INSPIRADORA

Gostaria de finalizar este artigo, contando uma história inspiradora que tem sido passada oralmente de geração a geração de judeus, especialmente entre os sefarditas, desde a Idade Média, embora não tenha sido registrada por escrito em nenhum documento. O motivo era a segurança dos envolvidos à época, bem como a de seus descendentes que já viviam ou haveriam de nascer. Eu particularmente, como descendente de judeus sefarditas que foram vítimas dessa perseguição implacável durante a Inquisição, identifico-me com qualquer história daquele período e sinto na alma o resquício da mesma agonia que devastou meus antepassados durante séculos. Esse relato, porém, considerado até hoje um feito extraordinário, nos serve de inspiração para saber que a luz sempre triunfará sobre a escuridão. 

Após a expulsão dos judeus da Espanha e, posteriormente, Portugal, suas vidas mudaram radicalmente, tendo de fugir com seus poucos pertences e aos milhares. Do dia para a noite, os judeus desses domínios perderam seus bens, suas sinagogas e escolas foram fechadas, e suas casas abandonadas e ocupadas por seus vizinhos. Os poucos que decidiram permanecer na Península Ibérica foram forçados a abandonar sua fé em público e a se converterem ao cristianismo. Entretanto, secretamente, permaneceram leais ao Deus de seus pais, e prosseguiram cumprindo os preceitos da Torá no que fosse possível. Viviam oprimidos pelo medo, pois descoberto qualquer vestígio de prática judaica que os entregasse, seriam imediatamente torturados e condenados à fogueira, nos “autos da fé”. Discorremos bem sobre isso no volume 1 de A Oliveira Natural.

Dentre os judeus bem-sucedidos na sociedade, estava o maestro da orquestra real de Barcelona, Dom Fernando Aguilar. Ele decidira ficar na Espanha e viver como judeu secreto, junto com muitos outros de seu tempo. Não havia sinagogas onde podiam se reunir nem escolas onde seus filhos aprenderiam a fé de seus pais, embora fizessem o melhor para transmitir a eles os ensinos da Tanach em seus lares. Alguns mandamentos, no entanto, eram impossíveis de serem praticados como, por exemplo, o toque do shofar nos dias de Rosh HaShanah e Yom Kippur. Um simples sopro no shofar significaria prisão imediata, tortura e uma terrível morte nas fogueiras da Inquisição, um espetáculo hediondo em praça pública para diversão do povo que se dizia cristão.

Imagem: Pinterest

Não obstante a terrível perseguição, Dom Fernando viu uma grande oportunidade de cumprir o mandamento do toque do shofar. Ele anunciou que regeria a orquestra real de Barcelona em uma nova composição de sua autoria no dia 5 de setembro de 1497. Segundo ele, tratava-se de uma apresentação inédita que celebraria todos os povos e culturas, em que todo e qualquer instrumento inventado no mundo estaria ali representado. E assim, o teatro se encheu de nobres e membros do clero, dentre os mais proeminentes da Igreja, incluindo os da Inquisição. Havia também muitos cristãos novos, judeus que, como Dom Fernando, haviam renunciado publicamente sua fé. Eles foram convidados secretamente e compareceram sob a promessa de que cumpririam o mandamento de ouvir o shofar.

O concerto começou, conforme planejado, dotado de uma música muito interessante e com uma enorme variedade de instrumentos: sopro, sinos, tambores, cordas de todo tipo. No meio da apresentação, uma breve pausa. Então, um músico veio à frente segurando o shofar — o chifre de carneiro. Ele o trouxe aos lábios e começou a tocá-lo: tekiah, shevarim, t’ruah… cada nota do toque de Rosh HaShanah em alto e claro som ressoou por todo o recinto. Todos apreciaram a habilidade do toque em um instrumento tão peculiar e desconhecido. Para os muitos judeus secretos na plateia, porém, foi a chance que tiveram em anos de cumprir o mandamento de ouvir o shofar. O dia 5 de setembro de 1497 era o primeiro de Tishrei de 5258, noite de Rosh HaShanah!

A coragem e a ousadia de Dom Fernando Aguilar são uma inspiração para todos os que amam o Deus de Israel, sua Palavra e seu Messias Yeshua, mesmo passados mais de 500 anos daquela noite notável e milagrosa. À medida que o cerco se fecha sobre os que amam a Deus e o cristianismo sofre uma crescente perseguição em todo o mundo, o que apenas aumentará até a volta do Senhor, somos exortados a nunca negar nossa fé e sermos fiéis até a morte, a fim de recebermos a coroa da vida (Ap. 2:10). Diante do cumprimento dos mandamentos de Deus e a morte, ficamos com os mandamentos, pois Ele já venceu a morte.

A outra lição é que, no concerto de Dom Fernando, todos os presentes ouviram o shofar, mas apenas os judeus secretos sabiam seu significado. Do mesmo modo, Deus está falando com o mundo hoje, mas somente os filhos reconhecem sua voz. A Festa das Trombetas foi o dia escolhido por Ele para ouvirmos o toque do shofar o dia inteiro. Isso é profético, pois o shofar representa a voz de Deus. É o tempo de afinarmos nossos ouvidos com o tom de sua voz a fim de nos levar à obediência para seguir suas veredas sem nos desviar, rumo ao alvo que é Ele mesmo, Yeshua HaMashiach. Isso é Rosh HaShanah.


[1] Leis de Teshuvah 3:4.

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